Passa já da hora o vosso despertar espiritual . . . Saiba que a tua verdadeira pátria é no mundo espiritual . . . Teu objetivo aqui é adquirir luzes e bênçãos para que possas iluminar teus caminhos quando deixares esta dimensão, ascender e não ficar em trevas neste mundo de ilusão . . .   Muita Paz Saúde Luz e Amor . . . meu irmão . . . minha irmã

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

CAPÍTULO XII – Livro: Vida de Jesus ditada por Ele Mesmo Causas da morte de Jesus. Oposição de sua família e amigos a seu decidido propósito de pôr termo a seu messianismo com o martírio. Seus irmãos pretendem fazê-lo passar por louco, mas ele consegue da mãe que os retenha na Betânia. Prossegue entretanto o Mestre, com afinco, a exposição de suas doutrinas, fustigando os sacerdotes, de qualquer religião que eles sejam, que se apóiam na força e chegam até ao homicídio para impor o que eles crêem ser a luz de Deus, quando ele ordena pelo contrário: “Não matarás”. Fustiga do mesmo modo os depositários da força pública, que não a cumprem para o bem de seus subordinados. Jesus, entretanto, pressentia a proximidade de seu fim e não perdia tempo, ativando pelo contrário sua propaganda.



Irmãos meus, as causas de minha morte podem definir-se assim:

“O delito de Jesus, no passado, foi o de facilitar as sedições  populares, propalando por intermédio dos sacerdotes, suspeitas de conivência com os pagãos.

“O delito de Jesus, mais tarde, foi sua inclinação para o culto  fundado pelo próprio Deus, e esta inclinação para o culto resultou de maior gravidade e de maior poder de sedução pela qualidade de filho de Deus que Jesus se atribuía.

“A lei mosaica tinha que alcançar a Jesus a quem tinham que  infligir-lhe o suplício da lapidação. Porém, a opinião da casta sacerdotal precisava da adesão dessa mesma autoridade que com freqüência se desinteressava das questões que suscitavam entre os hebreus, e precisava-se também do concurso popular para o cumprimento da vingança do clero. Pelo que tomaram-se das últimas pregações de Jesus provas de culpabilidade como perturbador e abolicionista das leis civis, além das religiosas, para fazê-lo cair sob a jurisdição de Pôncio Pilatos, procurador romano. E perante o povo Jesus foi acusado de sedução e pacto com o espírito das trevas”.

Refiro aqui os motivos de minha condenação, motivos cujo valor discutirei depois, ao mesmo tempo que darei uma explicação de cada um dos delitos que me imputavam, por efeito de uma reprodução inexata de meus ensinamentos. Isto nos conduzirá a extensas explicações e terei que honrar a coragem de meu intérprete, que sofrerá por estes minuciosos detalhes, mais do que tenha sofrido por causa das anteriores pressões de meu espírito.

José e Andréia preparavam as humilhações que amarguei mais tarde, referindo lamentáveis episódios de minha infância, referentes aos últimos dias de meu pai e ao abandono de minha mãe. Eles agregaram à expressão de sua falsa piedade pelo que designavam como minha pobreza intelectual, a difamação de minha vida íntima e de minha qualidade de filho de Deus, por meio de vis espionagens, com juízos desleais e com uma designação burlesca em lugar da que eu havia tomado.

Não busquemos, irmãos meus, nos livros do antigo estilo uma explicação do título de filho do homem, que se me outorgou por escárnio, como acabo de dizer. Desembaracemo-nos das tenebrosas histórias para poder elevar nossa narração até à simplicidade do espírito, que tudo o esclarece, Não levantemos, por outra parte, uma desaprovação demasiado severa sobre certas personalidades desde que o fermento das idéias e o impulso do espírito resultam muito a miúdo de causas obscuras para a inteligência humana.

Defendamos nossa alma e nosso espírito contra todos os entusiasmos e contra todo o preconcebido. Façamos distinção entre as diversas graduações, porém não maldigamos ninguém. Façamos da vida de Jesus um código de moralidade para todos os homens e esforcemo-nos em demonstrar que a vida humana deve ser respeitada, porque ela é uma emanação da alma divina. A vida humana encerrada nos limites impostos pelo Criador é um descanso em meio do caminho da imortalidade. A vida humana deformada pelo vício, encurtada pelos excessos, torturada pelos ódios, despedaçada pelo delito, representa uma espantosa falta de razão que revela a bestialidade da natureza, ainda não domada a tendência para a bestialidade primitiva, por causa de um regresso na ordem ascensional; as duas, bestialidade de natureza e bestialidade regressiva, constituem os verdadeiros flagelos do mundo. A primeira revela a força brutal da besta; a outra dirige as tendências da besta como que para fazê-las mais mortíferas. As duas desenvolvem, mediante o contato, os males asquerosos da alma, do espírito e do corpo; as duas marcham entre o sangue, alimentam-se de orgias, adormecem, vencidas pela saciedade, sobre ruínas.

Representando-vos a Jesus nos últimos momentos de sua vida de Messias, irmãos meus, não alimento a idéia de chamar vossa atenção tão-somente sobre Jesus, porém, sim, peço que todos os que leiam estas páginas reflexionem profundamente a respeito dos ensinamentos que elas oferecem à sua consideração. Não tenho mais que um propósito, e este é o de converter em melhores aos homens, propósito que será alcançado se eles meditarem sobre minhas palavras.

Defino as feridas de minha alma para caracterizar a aproximação que existe entre as almas humanas. Explico a culpável intenção dos que me desconheceram para voltar a trazer para uma suave resignação aos que se vêem caluniados. Declaro inimigos meus aos perspicazes, aos orgulhosos, aos depravados, reconhecendo em troca como novos discípulos aos homens de boa vontade, aos humildes, aos deserdados de bens do mundo, aos famintos dos tesouros eternos. Sempre digo: O que não é por mim é contra mim. Felizes os que fazem provisões para a vida futura e que caem na pobreza voluntariamente durante a vida presente; o reino de Deus pertence-lhes.

Buscai, e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á. A luz e a verdade são dons de Deus, espalhai-as amplamente entre todos os que as solicitam, com o ardor de uma alma livre e com um espírito desejoso das cousas celestes.

Porquanto eu sou sempre o Messias, filho de Deus, que baixa da luz para amparar tudo o que já amparei, para defender tudo o que já defendi, para combater tudo o que por mim já foi combatido.

Porquanto eu venho para destruir e para reconstruir, para demonstrar a meus discípulos qual é o reino a que eles devem aspirar. Tal reino não é deste mundo. Não há mais lugar para equívocos. O espírito liberto das sombras da natureza humana ilumina-se de luz divina, não lhe sendo já possível desviar-se por ignorância nem diminuir-se por temor das crueldades dos espíritos humanos. Este espírito, desde a elevação no meio da qual Deus o admitira, baixa a este mundo para trazer-vos a concórdia e a esperança, proclamar a imortalidade e o amor universal, em nome de Deus. Volvamos, irmãos meus, ao ponto em que vos deixei no final de meu último capítulo.

A tranqüilidade de que eu gozava na Betânia parecia-se ao silêncio que precede às explosões, porque em Jerusalém, o ódio surdo dos sacerdotes começava a manifestar-se ostensivamente e o povo, de cujas simpatias eu gozava desde as bravatas que lançara nas proximidades do Templo, prestava ouvidos complacentes aos murmúrios que se faziam correr a respeito da inépcia e falsa virtude de minhas máximas, da vaidosa pretensão de meu espírito, que eu me haveria comprazido em evidenciar, conjuntamente com as demonstrações de minha pobreza e abnegação corporal.

Minha mãe encontrava-se em Jerusalém devido a um chamado de Maria de Magdala. Ela era tomada nesses momentos duma inquebrantável vontade. Negou-se a voltar para Nazareth e me vi obrigado a contemplar até minha morte essa sua tristeza que constituía uma viva censura para meu sacrifício, essa dor que penetrava em minha alma, enfraquecendo-a. Maria de Magdala empregava, ante mim e minha mãe, toda essa energia que pode arrancar-se da paixão e de toda essa doçura e suavidade que nasce da prece. Retorcia-se nos espasmos do desespero ou ajoelhava-se piedosamente para pedir a Deus o poder de abalar minha resolução. Ela arrojava-se a meus pés, para manifestar me, com voz baixa e trêmula, toda a felicidade de um amor puro, porem invasor dos ímpetos da alma e das faculdades do espírito. Depois levantava-se, abraçava minha mãe e cobria-a de beijos frenéticos e suplicava-me que salvasse as duas da morte e do inferno, aonde seriam arrojadas por meu suplício e minha glória.

A repetição de tais demonstrações produzia no meu espírito o efeito de acidentes que interrompem o curso dos pensamentos. Sentia-me prostrado pela emoção quando algum feliz abalo vinha arrancar-me dos braços maternos que pretendiam reter-me com seu contato ardente, capaz de tornar-me louco ou covarde.

Maria de Magdala não era estimada somente por minha mãe: todos os meus discípulos e as mulheres vindas da Galiléia a estimavam. Marta, Simão, a jovem Maria notavam nela as sólidas condições da mulher desenganada e cansada dos prazeres mundanos, ao mesmo tempo que descobriam-lhe o semblante resplandecente pela graça e suaves condições da alma. Maria de Magdala era mais instruída que a maior parte dos que me rodeavam. Ela me era devedora do desenvolvimento de seu espírito e da certeza de seu conhecimento, porém, ainda antes de nos havermos encontrado, ela possuía já mais conhecimentos do que possuíam em geral as mulheres desse tempo. Maria teria sido perfeita sem a concentração de sua alma para uma pessoa, se bem que amava, apesar de tudo, a Deus com sinceridade. — Pobre Humanidade!

Propus a minha mãe que me acompanhasse a Betânia, para que não oferecesse a meus irmãos um apoio com sua presença, porquanto não dissipava neles o desatinado propósito de seguirem-me. Pus deste modo fim às nossas penosas reuniões. Minha mãe dedicava-me mais carinho do que aos seus outros filhos. A elevada opinião que ela formara a respeito de meu destino, quando meu tio Tiago quis participar de meus trabalhos e de meus perigos, serviu para exaltar esse sentimento filho dos cuidados e inquietações que lhe havia proporcionado o mais débil e menos simpático dos membros de sua numerosa família.

Depois de nossa última entrevista em Nazareth, minha mãe alimentava um só desejo: salvar-me da morte. A descoberta que ela fez do profundo afeto de Maria proporcionou-lhe uma esperança à qual associou todos os outros recursos pessoais, que considerou úteis para seus fins. — Mãe infeliz! — Cem vezes mais infeliz que se houvesse compreendido desde o princípio a inutilidade de seus esforços. — Mártir humilde! — Mártir cujo martírio foi cem vezes mais cruel do que se houvesse aceitado, como uma ordem de Deus, a renúncia e a separação.

Irmãos meus, a expansão de uma alma de Deus não basta para dar-lhe a suprema compreensão da fé, e minha mãe, minha terna mãe, impregnada das teorias de uma religião imperfeita, não podia, apesar de sua confiança em mim, renunciar a tudo o que havia acreditado e praticado até então.

A liberdade da alma adquire-se por meio da força intelectual do espírito. Por força intelectual não entendo as aptidões mais ou menos pronunciadas para o estudo das ciências exatas, senão o impulso positivo da idéia para a solução de tal ou qual problema colocado no campo do infinito; entendo determinar a força intelectual do espírito, alimentando-a com o desejo fervoroso de conhecer as origens e imprimindo-lhe o cunho de uma vontade inalterável de avançar sempre e mais.

Repelir uma crença que se apóia tão-somente sobre velhos preconceitos e errôneas referências, para abraçar uma fé radiante de verdade, no meio de um céu de luz fascinadora e infinita, é um fato que não pode produzir-se senão com a derrocada das aspirações materiais, com a absorção do princípio terrestre do espírito efetuado pelo princípio espiritual do mesmo espírito. É então que se rompem as sujeições da alma e que ela, possuída de sua liberdade, segue o espírito que se encontra na posse de suas forças.

Deus não se revela à alma que, embora amante, se torna escrava de um espírito que age unicamente por solicitações e não por própria ciência e consciência. Deus, pois, não se revelava se não em parte, à mulher piedosa, porém ignorante das fadigas que transportam para as delícias da fé, dessa fé sem contradições e sem terrores, que paira acima dos perigos e sorri no meio das torturas, que recebe luz de origem divina para cumprir todos os deveres, destruir todas as humilhações, avançar para todos os heroísmos.

Se minha mãe houvesse facilitado minha missão com sua fé, irmãos meus, ter-me-ia poupado uma grande amargura durante as lutas de meus últimos dias, entre as recordações da vida que fugia e as promessas da vida que se aproximava. Se minha mãe e Maria de Magdala se tivessem associado em toda a plenitude da fé, dentro de minhas crenças, meu espírito ter-se-ia mantido à altura de minha família espiritual, mas pelo contrário a tendência carnal desses dois amores diminuiu minhas forças e preparou minha fraqueza sobre o madeiro do sacrifício. Minha fé não se dobrou. Quando a fé se estabelece sobre a realidade demonstrada materialmente, não pode enfraquecer-se; mas a natureza humana humilhava tão profundamente o espírito agitado sob a pressão das fantasias contraditórias, que tinha que fazer um esforço para reconquistar essa liberdade tão querida e tão necessária para um apóstolo de Deus.

A dependência dos espíritos aumenta em relação com a inferioridade do mundo em que habitam, e acrescento que apesar das luzes espirituais e da força intelectual de um espírito, ele tem que sofrer mais ou menos deploravelmente pelas sombras lançadas sobre seu ideal e pelos assaltos dados às suas convicções, em um mundo em que todas as crenças religiosas se traduzem tão somente com demonstrações referentes ao passado, ao porvir, ao presente e à honra do espírito.

A família dos homens é constituída de alianças sem homogeneidade e sem força coletiva para alcançar seu objetivo. Estas alianças se convertem em lamentáveis provas para os espíritos honrados com a elevação alcançada precedentemente na jerarquia moral e intelectual.

No exercício de sua liberdade o espírito encontra a calma necessária para a sua fé, o ardor para as concepções atrevidas e a decisão para dirigir sua obra. Porém, pode acaso esta liberdade ser completa e duradoura? Desgraçadamente, não! — Não, porque a triste dependência dos espíritos, uns dos outros, deve existir para o estabelecimento da justiça de Deus nos mundos em que a destruição das espécies inferiores por outras espécies superiores, assinala uma marcha progressiva até chegar ao homem; nos mundos em que a enorme desproporção dos espíritos entre si provém de causas laboriosamente definida pela ciência que demonstramos, ciência que reconhece a imutabilidade das leis naturais. Agora, constituindo uma lei deste mundo a dependência material para os espíritos, ninguém pode iludi-la, e o espírito superior que se encontra aqui de passagem, conquista uma liberdade provisória ou se entristece na escravidão de sua vontade.

As fraquezas da fé são inerentes a toda a crença sustentada com o auxílio de concessões da razão. As fraquezas na fé constituem motivos de constantes esforços para todos os que praticam uma religião sem compreendê-la. O fanatismo, que consiste em uma fé ardente privada da razão, deve ser considerado como uma enfermidade do espírito. A fé verdadeira jamais se separa da razão. Ela assinala uma personalidade convencida dos atributos divinos e esta personalidade vê-se obrigada a curvar-se perante os deveres que daí lhe resultam.

Qualquer que seja a causa diretriz do dever, ela é o resultado de lutas, de claudicações, de faltas anteriores do espírito, e os deveres futuros do mesmo espírito se constituirão do mesmo modo, sobre a base de seus meios atuais.

Somente com muita lentidão a natureza humana pode desprender-se de suas tendências carnais, pois só a fé verdadeira proporciona o estímulo da coragem, a perseverança nas empresas, o desprezo pelos perigos, e o estudo dos deveres torna-se cada vez mais fácil, a matéria desgasta-se ao conquistar o espírito novas posições, o qual se eleva de etapa em etapa até o aniquilamento da matéria.

Irmãos meus, a fé verdadeira honra a inteligência laboriosa que percorreu diversos caminhos, os quais lhe serviram de protetores. A fé verdadeira é o prêmio de todos os espíritos anciãos, cujo adiantamento intelectual não se vê deprimido pela decadência moral.

Fé resplandecente! Tu nos confias o segredo de nossos destinos. Tu nos dás a explicação de Deus, da sublimidade de suas leis, do poder de sua justiça e de seu amor; tu apontas o dever com a certeza de seres compreendida... O dever descansa no cumprimento da lei geral e nas obrigações morais, estabelecidas em nome dos princípios do direito individual. A lei geral, princípio de direito individual, emancipação, deduzida de uma criação inteligente; imortalidade, conseqüência da perfectibilidade; vós exibis o espírito humano ao desprezo das grandezas universais, porque o espírito humano pratica ou aprova o homicídio.

A família humana ultrapassa todos os erros da razão, quando afirma o direito de morte. Deus, árbitro soberano dos espíritos, concede-lhes o corpo como instrumento, e o corpo conserva-se mais ou menos tempo, segundo a direção que lhe é impressa pelo espírito e o lugar habitado pelo espírito e pelo corpo.

Decrescimento antecipado de forças, ou debilidade de nascimento, intermitência de saúde e de enfermidade, desenvolvimento feliz ou extenuação prolongada, amplitude de manifestação ou opressão servil, decadência natural ou acidentes fortuitos, tudo isto demonstra o cansaço atual ou o cansaço precedente, tudo isto explica a disciplina universal por meio da prova e da reabilitação, e rechaça os nomes, os mais monstruosamente estúpidos como: Deus dos exércitos, Deus vingador, Deus ciumento, Deus terrível.

Vis assassinos, defensores embrutecidos de uma causa má, defensores sagazes de uma causa incompreensível, heresiarcas realmente convencidos ou valentes apóstolos de uma falsa religião, que julgais verdadeira, todos vós sois mais ou menos culpados diante de Deus e Deus vos julgará.

Delinqüente endurecido, hás de permanecer perturbado enquanto não apareça o arrependimento como indício de castigo e a expiação voluntária te seja levada em conta como atenuante. Mas, chegado a este ponto, poderás trabalhar sob as vistas de Deus e teu trabalho será recompensado. Pobre ignorante! Hás de vegetar entre inquietações e indecisões, até à aparição de uma luz distante que irá aproximando-se e tornando-se cada vez mais visível.

Livres ou encarcerados, mestres de verdade, discípulos conscientes do erro, Deus vos terá em conta as circunstâncias desses erros, da causa de vossas fraquezas e reparareis vossas culpas e gozareis das honras devidas às reparações. Assim é a justiça de Deus. Ela levanta os maiores culpados, ordena a emancipação, leva em conta os trabalhos, pesa os atos de valor, prepara novas glórias a seus Messias, depois de haver purificado seus espíritos, ofuscados pelas glórias precedentes.

Justiça dos homens, quando chegarás a ser uma cópia da justiça de Deus?

(Irmãos meus, emprego aqui a palavra justiça, para designar vossa força social; mas vossa força social, encontrando-se privada da idéia que representa a palavra justiça, reconheço que esta palavra é deficiente e continuarei empregando-a tão-só para ser compreendido.)

Justiça dos homens, a que deixa envilecer-se com todos os vícios uma forma humana, e que, em um momento dado, toma esta forma humana e mata sob o pretexto de dar um exemplo de que precisa a sociedade, embebida das mais abomináveis máximas de imoralidade e desprovida do sentido intelectual até o ponto de, por uma parte, os mandamentos de Deus, continuamente repetidos, não serem jamais observados, e, por outra parte, negar-se a existência de Deus; justiça dos homens, a que decreta a morte com o sentimento do dever cumprido, que se apóia na mentira ao invocar a Deus para matar, e que resulta sempre como uma conseqüência dos instintos da natureza bestial, qualquer que seja a crença religiosa de que se alardeie!

Depositários da força social, os postos que vós ocupais neste mundo de provas são conseqüência natural das dependências humanas e preparam outras dependências humanas. A expressão de vosso poder, não havendo tido jamais causa motriz à emancipação dos espíritos e à justa distribuição dos auxílios materiais, constituirá sempre uma vergonha e uma condenação para vós.

Alcançareis o sentimento de vossa inferioridade na lembrança das explosões de vaidade de vosso orgulho e sofrereis a terrível pena de talião, aplicada inexoravelmente em todos os casos de sangue derramado deliberadamente ou com a fria crueldade de uma inteligência humana. Eis, ó depositários da força social!, os castigos aplicados a todos os homens que tenham dirigido outros homens, sem antes iluminarem-se com o sentido moral e intelectual dos seres superiores.

Justiça de Deus, a misericórdia te acompanha, posto que deixas uma porta aberta para o arrependimento. Justiça dos homens, acompanha-te a mais espantosa demência, pois que, ou nada sabes da imortalidade, e então jogas a um precipício sem fundo todos os pensamentos cuja origem não podes explicar, essas pulsações que fazem palpitar outros corações, essas forças que parecem destinadas a produzir mais do que têm produzido até este momento,¹ ou tens noções a respeito da imortalidade, e por que então te atreves a dificultar o caminho para a imortalidade?

Espantosa demência! Já o disse, Justiça humana, Jesus como todos os condenados, que têm tempo para isso, podia tentar iluminar-te para salvar sua vida, somente que Jesus devia considerar-te suficientemente iluminada, e não se defendeu. Justiça humana, pergunta a teus mártires pelas diversas fases de sua agonia; todos te dirão que jamais tinham amado tanto como nesse momento, aos que estavam para deixar. Todos oferecerão minuciosos detalhes a respeito da calma fingida e dos alardeados atos de coragem, que depõem em favor de sua valentia no mesmo momento em que o coração geme despedaçado pelas ansiedades da dúvida, da vergonha, dos remorsos e a naufragada esperança; quando a alma treme em frente da horrível visão que lhe proporcionam os aparatosos acessórios do suplício, inventados pela maldade no meio de suas orgias.

Grande Deus! Quanto sangue derramado sobre esta terra! Tremo ao pensar no passado, no porvir, no presente, em todos os países, em todas as religiões, em todas as origens, em todas as castas, em todas as sucessões, em todas as ambições e até em todos os caprichos manchados de sangue, e dirijo a todos os mártires minhas reminiscências de mártir, e elevo, com força, minha voz a Deus, suplicando: Piedade, misericórdia, Pai meu, para estes homens, que uma sociedade perversa impeliu para o delito, por meio do ateísmo, e aos quais castiga imediatamente com o delito. Digo a todos os justos: Como vós, sofri pela separação da carne, como vós fatiguei meu espírito na contemplação das misérias morais, como vós duvidei da utilidade de minha vida. E nesse momento solene em que a natureza luminosa do espírito se turba sob o peso das aflições da vida corporal, nesse momento precursor de minha liberdade, a elevada idéia de Deus pareceu fugir-me e meu espírito encheu-se de dor e de pesaroso recordar.

Ai de mim! As explosões de uma alegria grosseira, os insultos de um povo enganado, o abandono da maior parte dos que me amavam, o desespero das mulheres que assistiam minha morte, a opressão de uma intensa sufocação, todas as lívidas harmonias das últimas torturas da alma e do corpo, lançaram em meu espírito uma profunda tristeza que rompeu nesta queixosa prece:

“Pai meu, por que me abandonaste?

— Mártires, maior que a  vossa, foi minha fé; mas se desmaiei ante as atrocidades da ingratidão humana, se senti entorpecer-se minha vontade e titubear meu amor fraterno, foi porque as dependências dos espíritos se convertem em escolhos para os grandes caracteres, quando a força do alto não os ampara suficientemente contra os embates que os assaltam de baixo. É que tinha ainda demasiadas ligações para que pudesse concentrar-me somente em Deus.

Mártires, a grande voz de Deus vos diz por minha boca: O espírito  eleva-se rapidamente no estudo das leis eternas, devido a uma morte imposta violentamente, quando esta morte não é o termo de uma vida manchada pelo homicídio.”

Irmãos meus, que um homem depravado levante sua mão sacrílega contra uma vida humana, não significa de maneira alguma que uma quantidade de homens tenha o direito de matar o assassino, porque o direito de morte só pertence a Deus e não pode ser um meio para uso das criaturas. Qualquer que seja a forma dada ao assassinato, o direito de assassinato não pode existir, porque Deus não pretendeu alterar tacitamente e segundo as circunstâncias, as palavras: Tu não matarás. Conclusão: A aplicação da pena de morte é um insulto ao Criador.

Outra conclusão derivada do mesmo mandamento, tu não matarás, é: A guerra e todos os atos que inundam a terra de sangue constituem negações do princípio divino e ao mesmo tempo asquerosas saturnais do espírito em delírio.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A este respeito, irmãos meus, é necessário fazer ressaltar a lucidez da alma, a penetração do espírito. Nunca deveis atribuir a causas sobrenaturais as faltas que são o fruto de vossa incúria, as faltas cometidas por vosso livre arbítrio, os acontecimentos derivados de uma ação da vontade, de um acordo ou confusão de idéias, de um capricho furioso ou de um estado de sonolência.

Nosso destino, é certo, apóia-se no passado, mas é também incontestável que ele melhora ou se agrava devido às honras ou às vergonhas do espírito e que estas honras e estas vergonhas preparam o porvir. Minha morte voluntária cerraria minha obra, porém nada me obrigaria a uma morte voluntária. Eu era entretanto um Messias destinado a sofrer pelos homens e também a morrer por eles, posto que na época que eu vim à Terra como Messias, os homens conduziam à morte a seus Messias. Porém, repito, eu podia fugir, e se minha hora estava próxima era porque, querendo elevar-me pelo martírio, via que não era possível alongar a luta.

Judas atraiçoou-me, não porque estivesse fatalmente predestinado para semelhante ato, dependente do meu ato pessoal, senão porque, seu caráter ciumento o impelia à vingança. Se eu tivesse evitado o suplício, Judas teria encontrado outro meio para demonstrar seu ressentimento.

Suponhamos que os homens são menos cruéis agora que quando eu vim à Terra como Messias, do que deverão resultar algumas modificações nos sofrimentos preparatórios da morte e nos da própria morte. Por que os Messias estão destinados a grandes sofrimentos nos mundos inferiores? Porque os Messias trazem verdades e nos mundos dominados pelas tradições da ignorância não podem ser aceitas as verdades senão à força de trabalhos, de humilhações, de lutas heróicas e de longa desesperação, até à morte, quaisquer que sejam as peripécias desta morte.

Regressei a Betânia contente por encontrar ali os que eu havia deixado e evoquei as felizes disposições de todos para festejarem meu regresso.

Chegamos à tarde e não obstante a primorosa acolhida de meus discípulos, o abraço efusivo de minha mãe, a emoção das outras mulheres, apercebi-me de um mal-estar geral.

                    “Mas Simão, exclamei, onde está Simão?”

— Marta, inundada de lágrimas, saiu de um aposento contíguo ao que ocupávamos. “Vem, disse ela, pelo menos ele morrerá tranqüilo, visto que te chama.”

Maria, minha pobre pequena Maria, atirou-se aos meus braços gritando: “Salva-o, Jesus, salva-o!”

Arredei Marta e Maria e entrei no quarto de Simão. Meu amigo era presa de uma febre ardente, porém tranqüilizei imediatamente a todos tornando-me responsável pelo seu restabelecimento. Coloquei-me a seu lado, permanecendo assim durante algumas horas² e fiz-me senhor desse delírio, que não anunciava nenhuma lesão mortal. Qualquer outro, conhecedor como eu das ciências médicas, teria obtido o mesmo resultado.

Seis dias depois Simão encontrava-se convalescente e a eficácia de minha cura foi reconhecida com o mesmo entusiasmo que sempre dava a meus atos mais singelos, uma transcendência funesta para minha segurança presente e para minha dignidade de espírito perante a posteridade.

Para celebrar o restabelecimento de Simão, Marta teve a idéia de dar um banquete no qual deviam honrar-me, a mim especialmente, e para dissimular a meus olhos o que havia de ofensivo em tal ato para meus princípios, Marta recordou-me um costume ao qual tínhamos deixado de submeter-nos à minha chegada, devido à tristeza que reinava na casa. Este costume designava o visitante como a um amigo esperado desde muito tempo antes; estavam prescritas demonstrações a que não podia subtrair-se o hóspede, sob pena de desmerecer no conceito do amigo que lhe conferia a hospitalidade.

Éramos muitos neste banquete. Tomaram parte nele vários parentes, alguns notáveis da povoação, todos os meus discípulos da Galiléia, Marcos, José de Arimatéia, minha mãe, Salomé, Verônica, muitas amigas e companheiras de Marta, formando enfim um total de trinta e nove pessoas. Marta, que devia completar o número quarenta, preferiu, segundo seus desejos ao terminar os preparativos, a honra de servir-me, conjuntamente com Maria de Magdala, Joana, Débora e Fatmé.

Maria, irmã de Simão, permanecia quase constantemente detrás dele, o qual estava sentado à minha frente, no centro da mesa. Sua intenção bem decidida era a de contemplar meu semblante, de surpreender meus mais insignificantes gestos, de saborear minhas palavras, estudando todas as graduações de minhas impressões, de abandonar-se finalmente a esse instinto indagador da alma, que despreza as formas exteriores para insinuar o pensamento no pensamento e concentrar o desejo no ideal.

A conversação devia naturalmente girar em torno do motivo da reunião. Meus conhecimentos espirituais, minha dependência divina, exaltaram as imaginações e me vi obrigado a explicar a origem de minha força moral, da maneira de lutar contra a efervescência popular que pretendia descobrir o dom de milagre onde apenas existia a harmonia das qualidades sensitivas da alma com fácil penetração do espírito.

Para melhor convencer a meus ouvintes, passei em revista minha vida de apóstolo e dei a cada um de meus atos, tidos por sobrenaturais, o justo valor que lhes correspondia dentro de minhas afirmações. Demonstrei-me como o Messias preparado para sua missão com sólidos estudos sobre o poder dos elementos, sobre a propriedade das plantas, a fraqueza do espírito humano e o império da vontade. Fiz depender todas as minhas alianças espirituais de uma mesma fonte: a longa vida do espírito, e todas minhas manifestações ostensivas do encadeamento prático e sábio das causas e dos efeitos.

Deduzi da ciência humana os caracteres ostensivos de meus meios curativos e da ciência divina, a felicidade de minha alma, a qual arrojava seus reflexos sobre as almas oprimidas e os espíritos enfermos. Estabeleci finalmente a grandeza de minha fé, a imensidade de minhas esperanças com tão vivas imagens e com tais ímpetos de entusiasmo, que Simão, apresentando-me uma taça cheia, suplicou-me que molhasse nela meus lábios, a fim de misturar o sopro divino com o sopro mortal, e de confundir o salvador com ele, o humilde ressuscitado, honra que ele pedia, graça que receberia com ardente fé, com o amor inextinguível que lhe inspirava o filho de Deus.

Nesse momento e depois de haver contentado a Simão, ouvi como um soluço a meu lado. Voltei-me e vi Maria. Ela se havia separado de seu irmão para acercar-se de quem havia sido chamado salvador; sua gratidão, seu culto se traduziam em acentos entrecortados, em espasmos da voz, e seu espírito sobreexcitado por minhas demonstrações, vinha implorar o apoio de minha força contra a violência de suas ilusões. Tomei a menina em meus braços, sua cabeça inclinou-se e seus cabelos soltos formaram uma moldura de ébano a seu rosto inanimado. Todos os olhares ficaram fixos e os peitos ansiosos, à espera do desenlace de tal crise, cujo termo se anunciou com algumas lagrimas e um fraco rubor da pele. Maria despertou como de um sono, sem compreender a emoção de que havia sido causa, e também com um sentimento de felicidade. Expliquei a Simão a extremada sensibilidade da irmã e indiquei-lhes, com insistência, que não deviam jamais contrariá-la bruscamente em suas excentricidades, a essa alma tão exuberantemente dotada, a esse espírito tão despoticamente governado pela alma.

Apenas tornada a si, Maria desapareceu. Encontrava-me, por conseguinte, em boas condições para falar de um acidente que me sugeriu numerosas observações sobre as naturezas corporais dominadas por visões demasiado fortes da alma e por ambições demasiado fortes do espírito. Em seguida deixei-me transportar, como sempre, por minha volúvel fantasia, falando com frases sentenciosas e proféticas, em evocações de meu espírito para o Ser Supremo.

Havíamos chegado ao final do banquete e ninguém já comia, nem bebia, senão que todos tinham ficado suspensos de minhas palavras.

Elevei-me vagarosamente para o absoluto de meus ideais referentes às alianças dos mundos e dos espíritos. Pouco a pouco senti-me como que separado dos que fraternizavam comigo nesse banquete, vendo-me rodeado dos homens do porvir, e apresentou-se-me através do suceder dos séculos minha emancipação desta terra. Depois, atraído pelo sentimento da atualidade, falei de minha morte, rodeando-a de todas as seduções da glória imortal.

Anunciei-lhes que quase todos me abandonariam, prometi-lhes que os honraria em seus esforços ou os consolaria em seus arrependimentos que os dirigiria para a luz com o auxílio dos dons do espírito para com o espírito e que os elevaria com a persistência de meu amor.

João, como sempre, encontrava-se à minha esquerda e esforçava-se nesse momento por conhecer aos que eu havia querido aludir ao falar de abandono. A este desejo, manifestado em uma forma de pergunta, respondi que a presciência a respeito dos sucessos se torna fácil por meio do esforço do espírito no estudo dos homens e das cousas.

“Muitos me abandonarão, acrescentei, porque muitos são fracos e   medrosos.
“Alguns me renegarão, outros me atraiçoarão, talvez para iludir a  responsabilidade ou para satisfazer seu fastio.
 “Os homens não acreditam suficientemente na minha força de   Messias e a proximidade do perigo os separará de junto de mim.
“Porém, depois de minha morte, os homens de quem falo  compreenderão a covardia de sua conduta e meu espírito se lhes aproximará novamente para continuar a obra que fundei.”

Irmãos meus, eu não assinalei de um modo mais preciso aos que me haviam de abandonar, renegar-me, atraiçoar-me. A razão vô-la dou com minha resposta a esse discípulo tão audaz em seu fanatismo, como exagerado em seus testemunhos de amor. A luz que brilha da ciência espiritual é a guardiã das forças humanas para perseverar nas atividades da alma e no heroísmo do espírito, mas não poderia determinar uma violação da lei que quer que a matéria seja um obstáculo para a visão completa da alma e do espírito. Eu gozava deliciosamente com as honras que me prodigalizavam e, quando Marta derramou água perfumada sobre minhas mãos e que sua jovem irmã me borrifou a cabeça e as roupas, demonstrei-me feliz ao contemplar a felicidade que elas experimentavam. A tarde terminou no meio de uma alegria expansiva, que nada veio turbar.

Irmãos meus, no capítulo treze deste livro passaremos em revista as causas do ódio dos sacerdotes e de minha condenação. Depois continuaremos a exposição dos fatos que precederam a minha morte.

¹ Refere-se naturalmente à doutrina das reencarnações, única que pode explicar o encadeamento dos fatos, dando explicação da maior parte deles, que de outro modo resultariam como as páginas espalhadas de um livro, que, separadamente, nada significam.
    Assim, como se explicam os ódios ou simpatias inatas que se manifestam entre duas pessoas que se vêem pela primeira vez? Por que em uma mesma família, a despeito da lei hereditária e apesar de igualdade do meio e da educação, uns filhos saem perversos, outros virtuosíssimos; uns intelectualmente deficientes, outros chegam a ser gênios, etc.? Só a doutrina das reencarnações explica estas diferenças. Nota do Sr. Rebaudi.


² Este processo eu o tenho empregado e emprego, com êxito, a miúdo. Todos podem igualmente empregá-lo, com a ajuda de um benévolo e intenso desejo de beneficiar o enfermo. Isto não quer dizer que sempre se obterá a cura nem que nossa ação possa ser comparável à do Mestre, porém, bem sempre produz. Nota do Sr. Rebaudi

sábado, 22 de fevereiro de 2014

CAPÍTULO XI - Livro: Vida de Jesus ditada por Ele Mesmo Jesus foi a Jerusalém, só, apresentando-se a José de Arimatéia, que o acompanhou por todos os lugares em que convinha fossem vistos, para os fins da obra do Mestre. Necessidade do sacrifício de Jesus, somente por ele compreendida. A parábola do mau rico. Associa seus discípulos mais íntimos à sua glória futura, sempre que souberem fazer-se credores dela com suas virtudes e dentro do conceito que meu reino não é deste mundo, como sempre dizia. Açoita aos mercadores do templo e aos hipócritas. Conversão de Madalena.



Entrei só em Jerusalém. O lugar para nossas reuniões havia sido fixado em Betânia. Eu tinha assim que sair todas as tardes. Privado de notícias desde algum tempo, aproximei-me da casa de meus amigos com muita apreensão. José de Arimatéia recebeu-me com expansão de alma e nobre veneração de espírito.

Acompanhou-me por todos os lugares em que tínhamos de ser vistos, como iniciadores da liberdade e da verdade, de que todos tinham sede e cuja manifestação todos desejavam. José era agora de minha opinião, porém contava que se atingiria o objetivo sem que sucumbíssemos materialmente na empresa.

Respeitei a ilusão de meu amigo, porque, se tivesse intentado destruí-la, a indecisão de José haveria fatigado minha alma e talvez enfraquecido minha resolução. Faziam-me falta testemunhos das laboriosas manifestações de meu espírito. — Que me importava, depois do êxito moral, a ruína material? — Que me importava um pouco mais ou um pouco menos de celebridade no presente, se só me preocupava o futuro?

“O sacrifício de Jesus, dizia para mim, não compreendido no  momento de sua realização, será mais tarde um convite para a resignação, para o sentimento da fé, para o desafogo da alma e para a paz do coração, para todos os infelizes. Por maior que seja agora a solidão de Jesus e o silêncio da história contemporânea, sua personalidade terá ditado leis de fraternidade e de amor a todos os homens e essas leis serão imortais.”

Por intermédio de José conheci muitos personagens importantes e a Marcos, de quem falarei mais tarde. Nicodemus era um rico das proximidades de Jerusalém. Recordo-me de suas liberalidades, quando eu vivia separado de minha família e que me havia comprometido como revolucionário. Fui à sua casa. Ele, sua esposa, seus filhos, seus irmãos, toda a sua família receberam-me com a maior cordialidade. Ampla hospitalidade, ternura ativa, harmonia de coração e de vontade. — Quão doce e consolador é o honrar-vos por meio da recordação!

Irmãos meus, acusando os depositários da autoridade religiosa, os depositários da lei, os afortunados e poderosos, eu tinha em vista tão-somente reformas sociais. Glorificando a pobreza, exortando aos ricos a sacrificar os bens da Terra para conquistarem os tesouros da luz de Deus, eu estava convencido que o espírito se emancipa quando sofre o martírio da pobreza, com o conhecimento e com a resignação; e meu desprendimento das riquezas tinha sua razão de ser por minhas observações da fraqueza humana e pelas vergonhas inerentes aos gozos carnais.

Porém, então como agora, eu sabia que em todas as classes se encontram naturezas fortes, dignos mandatários, espíritos independentes capazes de fazerem germinar os desígnios de Deus, e meus amigos faziam-me a justiça de tomar-me por um filósofo religioso e não por um utopista ou sonhador.

Minhas parábolas a respeito dos maus ricos e da participação dos pobres à majestosa felicidade do céu, tinham todos os caracteres da estreiteza que me impunham as condições dos espíritos, e a figura de Lázaro como a de Abraão me eram familiares para fazer ressaltar a justiça das represálias e a participação dos grandes homens, que eram venerados pelo povo hebreu, nas manifestações desta justiça.

Lázaro, abreviativo de Eleazar, era um nome muito espalhado na Judéia, e Abraão, a quem a lenda convertia em um pai desumano, um sacrificador ímpio, representava ante os olhos destes homens cruéis, na infância espiritual, a idéia da obediência passiva e o modelo das virtudes religiosas.

“Lázaro, o pobre, coberto de úlceras, apanhava as migalhas que  caíam da mesa do rico, e o rico, cheio de alegria e rodeado de numerosos comensais, desvia seus olhares do pobre e fecha seu coração a toda piedade.

“A morte desce sobre o rico e o pobre. O rico sofre os tormentos  sofridos pelo pobre, e muito mais, enquanto que do fundo da Geena, onde se encontra encerrado, retumbam seus gritos. Depois sua voz se enternece suplicando uma intercessão.

“O céu abre-se, porém, somente para aumentar os sofrimentos do  rico. Avista Lázaro e depois desta visão as trevas fecham-se em seu redor”.

Por Geena eu queria significar um lugar lúgubre, sinônimo de inferno. A palavra Geena era ainda mais expressiva que a de inferno, em algumas localidades.

Na época a que temos chegado, irmãos meus, minha posição podia permanecer estacionária ainda por muito tempo. Pelo que convinha-me criar uma escola e esperar, no meio de lutas surdas e pacientes, um novo estado de cousas. Meus amigos assim me aconselhavam. Diziam-se meus discípulos e falavam-me sem descanso das aspirações do povo para a liberdade, do ódio do povo contra a família sacerdotal que reinava então. Mas eu não queria apoiar-me em probabilidades, embora não fossem tão-somente aparentes, e tinha que garantir-me contra a vergonha de escudar-me detrás da amizade, salvaguardando minha vida a expensas de minhas aspirações espirituais, entretanto era necessário afirmar meu título de Messias com a força da publicidade de meus ensinamentos, assim como meu título de filho de Deus, com a auréola do martírio.

José, e com ele alguns homens de boa vontade que compreendiam minha doutrina, cujos preceitos divulgavam, tiveram que submeter-se à minha resolução quando se demonstrou que não era possível mudá-la por meio de raciocínios. José, e com ele alguns homens de boa vontade que me rodeavam em Jerusalém, amavam-me e davam-me provas diárias disso. Depois de terem-me franqueado o caminho das honras populares, defenderam-me contra os ódios de casta. Depois de haverem-me defendido dos sectários e dos hipócritas, intentaram defender-me do furor das multidões. Depois de minha morte apoderaram-se de meus restos mortais com a intenção de honrá-los com piedosas demonstrações e impedir uma profanação à minha memória que tornava provável a crença em minha ressurreição corporal, divulgada por fanáticos, aos quais os acusadores e os negadores de Jesus, filho de Deus, teriam querido dar-lhes um grosseiro desmentido.

Meus amigos, pois, não foram culpados de nenhuma maquinação, porém preferiram dar pábulo à superstição antes que abandonar meu corpo à possibilidade de uma mácula, sem dúvida insignificante diante da razão, porém dolorosa para a alma penetrada da emanação humana, para o próprio espírito, comovido ainda pelas expressões fraternais.

Dei livre curso a meus pensamentos, cada vez mais desprendidos da vida de relação e livres dos temores humanos. Minhas formas oratórias tomaram desde este momento uma grande semelhança com as negras imagens e proféticas ameaças de João. Separei-me repentinamente dessa agradável e plácida expressão do semblante que atraía para mim a confiança e afeto de meus ouvintes, dessa dicção cheia de humildade e de benevolência, que cicatrizava as feridas da alma e provocava as resoluções do espírito. Lancei anátemas, não já como antes, no meio de transições habilmente explicadas e medidas, senão permanentes, por assim dizer, em todos meus discursos. A severidade de minhas afirmações a respeito dos tormentos da vida futura tinha o propósito de evidenciar os excessos da força bruta, certa, em lugar do direito comum. Eu acometia contra todas as alturas, queimava todos os ideais, derrubava todas as autoridades, denunciava todas as potestades da Terra diante das iras de meu Pai predileto.

“Meu reino não é deste mundo. Os que quiserem seguir-me  devem distribuir tudo o que possuem pelos pobres.
 
Felizes os que empobrecem voluntariamente; a luz acompanha-os  e a força ampara-os; a graça acumula-os e a virtude coroa-os. Eu sou o consolo e o maná celeste; a luz e o pão da vida.

“Os que acreditarem em mim viverão na abundância, o que fugir   das honras do mundo será honrado na casa de meu Pai.

“Todo aquele que ame aos homens como a seus irmãos,  será  recompensado, porém os egoístas, os orgulhosos e os hipócritas, os senhores e os poderosos do mundo serão amaldiçoados e atirados como lenha seca no fogo eterno.

“Ouvir-se-ão gritos e ranger de dentes, blasfêmias e queixumes;  mas Deus permanecerá surdo a todos os brados das trevas e a paz dos justos não será perturbada.”

Associei à minha glória futura meus discípulos mais íntimos, mas fazia depender o cumprimento de minhas promessas do cumprimento de seus deveres.

“Reconhecer-vos-ei, dizia-lhes, se tiverdes prestigiado minhas  doutrinas com vossas obras e tiverdes semeado virtudes com vossos exemplos, mais do que com vossas palavras; se me houverdes honrado com a humildade e pobreza de vossa vida, com a marcha para Deus de vossos espíritos e com vosso amplíssimo amor para com todos os homens.

“Proclamai minha lei, porém dai ao mesmo tempo prova de vossas  esperanças, desprezando os bens da Terra e dizendo como eu: nosso reino não é deste mundo.

“Acostumai-vos a defender vosso mestre, pondo em prática o que  ele mesmo pôs em prática. O exemplo impõe a fé e produz o respeito, muito melhor que as belas harmonias da linguagem e que as mais sólidas demonstrações de espírito a espírito. Os dons do espírito são improdutivos quando não emanam da ciência adquirida em um estado de pureza de intenção e de certeza de vistas; são efêmeros quando não determinam cada vez mais a emanação da fé e do amor.

“Predicai minha doutrina, porém sustentai corajosamente o direito  que tendes para predicá-la. Este direito consiste no abandono de toda supremacia humana e no sacrifício completo de vossos interesses terrestres.

“Dar-vos-ei forças para triunfar de vossos inimigos e minha casa  será vossa casa; porém, se vos tornardes prevaricadores da lei, me retirarei de vós.”

Meus discípulos alcançaram-me e rodeado de todos eles, foi como eu tive um círculo de ouvintes no Templo, e principalmente nas dependências do Templo. Entre eles havia mais denunciadores que verdadeiros crentes. O costume desses tempos, irmãos meus, era que os homens colocados em evidência por sua erudição e inclinação do espírito para as cousas públicas, se vissem honrados com a atenção dos outros homens, em todas as circunstâncias que lhes permitissem estabelecer novas idéias e sustentar uma opinião já formulada. No templo, as piedosas demonstrações eram seguidas freqüentemente de discussões científicas e de atraentes conferências, porém essas discussões científicas e essas conferências de alto valor não tinham em geral o povo como testemunha. O povo preferia as análises rápidas do que tinha havido nas assembléias, dentro das mesmas assembléias, e a multidão, quer dizer, o povo menos iluminado, porém mais impressionável, alimentava-se de emoções nos lugares públicos, e principalmente nas galerias do Templo, onde se encontravam reunidos os acessórios de uma devoção ignorante e de excitação para todos os atrativos banais da curiosidade e da vaidade humanas.

Como simples chefe de escola eu teria podido inspirar confiança aos homens mais letrados do povo, expondo-lhes o extrato das doutas assembléias e não misturando, senão com prudência, às opiniões de cada um as expansões de meu próprio espírito; mas o sentimento de meu destino era demasiado dominante em mim, para que eu me submetesse à lentidão de um êxito demorado (já falei disto ao referir-me às instâncias de meus amigos ao chegar a Jerusalém). E coloquei-me em frente dos ódios e das vinganças.

A lei judaica não representava a meus olhos senão o código grosseiro de um povo escravizado pelas forças especulativas de duas aristocracias: a da inteligência, guardiã severa da superioridade relativa; a da matéria livre, lutando sem descanso pelos direitos que dão e conservam a posse do mando feroz. Usurpação de classes privilegiadas, ações restritivas da liberdade do espírito humano criado para a liberdade, fanatismo degradante, devotas impiedades, holocaustos sacrílegos, delações e hipocrisias, eu empregava para combatê-las todo o ardor de minha alma, todas as potências de minha vontade, todos os recursos de meu espírito, através das vergonhas morais e das ignominiosas exações.

Sustentava-me nesse ardor de alma calculando os poucos instantes de vida que me restavam e alimentava e mantinha, vivas, essas energias de minha vontade, esses estremecimentos de cólera na lembrança e na contemplação de delituosos desejos, de contagiosas depravações, de covardias e de asquerosidades humanas. As sujeições do espírito me inspiravam um profundo
desgosto pela humanidade inteira. Não dizia já: “Respeitai a lei de César”, senão:

“Não há mais que uma lei e essa é a que vos trago. Todos os  homens são iguais e têm que dividir-se entre eles todos os bens da Terra”.

A contínua tensão de meu espírito para as honras espirituais ocultava-me o que estes ensinamentos tinham de defeituoso; e depois de dezoito séculos não vejo ainda o mundo de minhas aspirações senão com a intervenção da ótica de minhas esperanças.

Irmãos meus, a dependência dos espíritos da Terra terá lugar até o momento de sua elevação na hierarquia dos espíritos da pátria universal e façamos ressaltar aqui a aberração do espírito de Jesus, aberração própria de todos os espíritos adiantados, além de examinar as causas e os efeitos destas aberrações. A desproporção das luzes espirituais de um espírito, com a situação temporal deste espírito na natureza carnal, estabelece lutas e transições que se assemelham a perturbações intelectuais.

O espírito oprimido por uma ciência que se excede da força de concepção dos que o rodeiam, desvia com freqüência seu olhar dos horizontes luminosos e deixa invadir seu pensamento pelas combinações de ordem material, para associar forças diferentes para a consecução de um objetivo, senão glorioso imediatamente, ao menos aproveitável para uma glória futura. O espírito honrado por produtivas alianças no passado, de visões e de realidades cheias de promessas na hora presente, caminha com passo seguro, especialmente no meio das dificuldades e das insídias que lhe criam e lhe levantam os ignorantes e os perversos.

Em seguida este espírito desfalece e não recobra sua coragem senão convulsivamente e atira-se nas extravagâncias das idéias, de acordo com as opiniões dos homens, e dá à lâmpada que possui as dimensões de um facho incendiário. Assim procedeu o espírito de Jesus nos últimos anos de sua vida de Messias.

Para que a aplicação dos preceitos de igualdade e de fraternidade tenha força de lei, em um mundo, é necessário que a maioria dos espíritos desse mundo esteja penetrada da mesma força moral para conseguir idêntico fim. Convém que a espiritualidade se encontre muito acima da materialidade e que esta se encontre livre de todas as deprimentes formas de conservação, assim como de todas as estreitas modalidades do gosto e dos desejos

Em uma palavra: A lei de Deus, em sua expressão mais pura, não pode ser posta em prática senão por espíritos perfeitos, que se encontrem em um meio também perfeito.

Jesus era, pois, um mau espírito quando dizia: Todos os homens são iguais e devem repartir entre si os bens da Terra. Jesus, e depois dele todos os que pronunciavam esta máxima, se têm equivocado de época: Jesus e todos os que queriam ou querem o adiantamento de uma humanidade, não deviam e não devem, em circunstância alguma, determinar ações com teorias não apropriadas à inteligência dos membros dessa humanidade. Permaneçamos firmes, irmãos meus, sobre as idéias procriadoras do porvir; façamos resplandecer na solidão de nossa alma o raio de ouro que há de aquecer todas as almas; porém não arrojemos nossas esperanças, nossa ciência, nossa felicidade como brinquedo dos estudos juvenis e procuremos não expor a chama nas paragens em que sopra o vendaval.²

O porvir começa na hora seguinte, preocupemo-nos em saber medir bem a parte de cada hora. Não confiemos nossos tesouros sem saber antes a quem os entregamos; não introduzamos no mundo a confusão de línguas; falemos de conciliação e de esperança a todos, porém falemos de liberdade tão-somente com os sábios. A fraternidade sem a luz da fé é impossível. O amor separado da fraternidade universal nada mais é que um simulacro de amor. Descobri a Deus e o sabereis adorar. Descobri vosso destino e vos amareis uns aos outros e Deus vos amará. Consultai a moral que se deduz da lei de Deus e destruí as armas homicidas, em nome da fraternidade dos povos.

Sempre existirão pobres e ricos, chefes e subordinados no mundo Terra, mas a emancipação gradual dará a todos a compreensão, e da emancipação completa surgirá o bem-estar geral.
Jesus tinha que contemplar com impaciência o espetáculo da falsa devoção, da incúria moral, das ilógicas crenças, do embrutecimento dos espíritos e tratava com dureza, nas galerias do templo, aos detentores dos pobres animais destinados ao suplício, aos mercadores de objetos fúteis, de amostras de amuletos de sortilégios e de supostas imagens religiosas.

“Vós converteis a casa de meu pai em uma caverna de ladrões,  dizia ele; e atirava  ao chão as bancas, juntando o furor do gesto à cólera da voz e dos olhares.”

Os corrompidos hipócritas faziam-no sofrer ainda mais e não os perdoava em nenhuma circunstância.

“Vós sois sepulcros caiados. O olho dos homens não se detém  senão nas aparências; porém Deus vê a podridão que reina sob elas.

“Vós tendes a doçura nos lábios e o ódio no coração; vossas   esmolas, vossas preces, vossas penitências não são senão meios para enganar os homens e gozar de prerrogativas no meio deles. Porém Deus se cansará e vós sereis esmagados sob as ruínas do templo que diariamente profanais. — Sim! — Este templo será destruído e eu construirei outro, que será imortal, porque todos os homens adorarão nele a Deus, como irmãos; porque todos os homens se reunirão na fé, sendo a palavra de Deus eterna e sou eu quem a trago.

 “Pobres loucos! — dizia Jesus aos homens entregues à vida  alegre e ao orgulho; vós destruís o porvir em favor do presente e o presente foge como uma sombra; adornais vosso corpo e desnudais vossas almas; buscais as honras do mundo quando Deus solicita em vão as honras de vosso Espírito. Ajoelhai-vos diante do bezerro de ouro enquanto vossos irmãos carecem de alimentos e de roupas. Agora vos digo: aqueles que agora não pensam senão em cousas inúteis, se verão mais tarde completamente privados do necessário. Os que gozam de honras humanas, no dia de hoje, não poderão pretender senão humilhações no dia de amanhã. E todos os que se comprazem nos gozos carnais, e todos os que colocam sua felicidade na posse das riquezas e do mando, serão os pobres, os deserdados, os párias de uma nova habitação temporal; vós tereis fome e sede, ó ricos egoístas; pedireis descanso, folgazões orgulhosos; e continuareis no trabalho, sem aplacar a fome e a sede.”

Ai de mim! — Corromperam-se meus discursos, mutilando-os e aumentando-os. Deram-se elementos ao erro, preparou-se a ignorância com a mentira, atribuindo-me as seguintes palavras:

“Se eu quisesse, destruiria este templo e o reconstruiria em três  dias”.

Quiseram responsabilizar-me por todos os milagres de que me faziam o autor alguns amigos meus e dos quais meus inimigos se valeram para perder-me. Nunca disse nem fiz nada, conscientemente, que pudesse servir de base às pueris crenças na alteração das leis da Natureza, e se eu tivesse cometido este erro, me acusaria dele do mesmo modo que me acuso de fraqueza em minhas relações de afetos, de imprevisão em meus princípios, de loucos entusiasmos em meus últimos atos e do desorientado desespero em minha hora suprema.

Irmãos meus, recordemos aqui as palavras que pronunciei no decurso de minha vida de Messias; tenho que explicar seu alto significado, que não foi compreendido então, e que surge destas mesmas palavras. Referindo os fatos de minha vida de Messias, tenho que repetir palavras já pronunciadas, porque estas repetições delineiam a verdade e só a verdade deve preocupar-nos nesta confidência dada e recebida com a firmeza do livre querer e da respeitosa dependência do espírito humano na luz de Deus. Quais são as fraquezas da natureza e a vaidade dos homens em geral, eles o saberão com real sentimento de verdade, quando esta verdade lhes seja demonstrada pela simplicidade do escritor, pela modéstia e sabedoria do moralista, pela força dos princípios, pela eqüidade do juízo e pelo acordo da idéia com a expressão da idéia.

Terão o sentimento da verdade, quando a verdade não seja mais desfigurada pela mesquinhez e ambições mercantis e pelo esforço para adquirir honras de celebridade humana.

Da minha livre vontade, da minha tranqüila coragem para demonstrar a verdade no meio dos conflitos terrestres, pensai, irmãos meus, em recolher os frutos e não agraveis vossas culpas, vossa desgraçada situação de espírito, com uma falsa opinião da dignidade humana, e com um deplorável uso dessa pobre razão, de que sempre alardeais tão fora de propósito. De minhas instruções praticai uma análise séria. Não vos atenhais à forma, fazei uma anatomia de seu fundo.

Não critiqueis as palavras, nem as repetições destas palavras; compreendei seu valor e indagai o que elas vos exigem, o que vos trazem, e tudo o que vos prometem em nome de Deus.

Eu era pouco conversador durante minha vida de Messias e meu método de insistir nas afirmações atraiu para mim o apoio dos homens de boa vontade, assim como o desprezo dos homens frívolos, dos homens de orgulhosas prerrogativas, assim como as zombarias odiosas dos devotos hipócritas, a vingança dos ferozes depositários das leis sociais, iníquas e antirreligiosas.

Eu repetia-me, é verdade: porém, fazia-o com intenção, e hoje mesmo não poderia penetrar o espírito de meus leitores com os princípios da felicidade espiritual na luz divina, senão com  repetições. Hoje mesmo não saberia tornar a dizer suficientes vezes a seguinte máxima que contém todos os elementos da ciência e da felicidade:

“Mantende-vos na fé e no amor. A fé pede vossa adoração para  um Deus forte e poderoso; o amor vos dita os deveres de fraternidade. A fé ilumina o espírito; o amor faz as honras da alma. Vós não alcançareis a sabedoria a não ser pelo estudo de Deus; vós não sereis fortes senão pela concepção da fraternidade”.

Desanimado a miúdo e enfermo do corpo e do espírito, eu repousava no seio de uma família de três pessoas, da qual a posteridade se tem ocupado tanto, que me parece indispensável endireitar, também neste ponto, muitos erros e suposições. Saiba-se antes que tudo que meu hospedeiro de Betânia chamava-se Simão e não Lázaro; que se encontrava de perfeita saúde à minha chegada e não leproso. Saiba-se que, durante a enfermidade contraída depois por ele, Simão nunca chegou aos extremos de ter que passar por morto, e saiba-se finalmente que eu não me prestei de maneira alguma a esta invenção de um milagre.

Eu não conhecia a família de Simão, tampouco a Simão, antes de minha última viagem a Jerusalém, e aceitei a hospitalidade deles de preferência a qualquer outra, porque sua casa situada no sopé da colina, sobre a qual se levantava a cidade de Betânia, oferecia-me uma solidão cheia de atrativos, com a perspectiva, cheia de movimento, de Jerusalém a meus pés. Simão e Marta, sua esposa, não tinham ainda ultrapassado os vinte e cinco anos; Maria, menina de treze anos, era irmã de Simão. Ela reunia a uma grande doçura de caráter e grande tendência para o espiritualismo. Os avós dos dois ramos tinham falecido, pouco tempo antes, muito próximo uns dos outros. O lar tinha o aspecto de uma dor profunda, ainda que silenciosa, quando eu ali me instalei. Marta, encarregada especialmente da direção interna da família, empregava em suas tarefas tanta minuciosidade e um trabalho tão uniforme e executado como que com fadiga, que parecia obedecer mecanicamente a uma força motriz do mecanismo da alma. Simão era de caráter tétrico e a pequena Maria se demonstrava sempre triste, assim como os servidores, que participavam do mesmo pesar de seus patrões. Quis fazer penetrar em meus novos amigos minhas doutrinas e o consegui.

Marta foi a mais difícil de convencer. Com essa mulher ignorante e obstinada em sua ignorância, tive que renunciar a toda demonstração séria referente à vida futura; porém manifestei-me tão agradecido a seus cuidados, tão desejoso de satisfazer sua curiosidade, contando-lhe os incidentes e as fadigas de minha vida nômade, tão feliz no que me rodeava que Marta, incapaz para analisar a fé de Jesus, abraçou esta fé como o náufrago que alcança uma terra desconhecida que lhe oferece segurança e repouso.

Maria compreendia minha missão, escutava minhas conversações, ajoelhava-se diante de mim quando os demais me rodeavam e procurava apoderar-se de meu pensamento, antes que ele tivesse tomado as formas da expressão. Meu olhar se fixava ternamente nesse semblante fresco, coroado por uma fronte pensadora, como uma auréola reveladora do passado e do porvir.

Quando Marta se assombrava da atitude livre e grave da menina, eu a repreendia docemente, fazendo-lhe compreender que as diferenças no modo de manifestar-se nascem das distâncias que separam os espíritos.

“Honra-te, Marta, pelo cumprimento de teus deveres, porém deixa  esta menina expandir-se em meu amor. Cada um de nós deve acumular tesouros no meio da posição que lhe foi indicada pela divina justiça.”

As relações de Jesus, irmãos meus, têm dado lugar muitas vezes a afeições moderadas, porém com freqüência também a afeições entusiastas, que repousavam umas sobre a fé religiosa manifestada com uma voz simpática, sobre uma doutrina amplamente aplicada às necessidades do coração e as aspirações do espírito, as outras sobre a difusa aliança da esperança em Deus e do impulso para a criatura; sobre a dilatação dos sentimentos humanos, evitada sua explosão pelo pudor da alma, ou dirigidos para um nobre objetivo por uma natureza superior à que os exteriorizava.

Vejo-me obrigado a ocupar-me dos atrativos carnais dissimulados pelo cunho religioso, porque desejo afinal falar de Maria de Magdala. Se não pude ainda informar meus leitores a respeito de uma personalidade tão intimamente ligada com a minha, é porque devia fazê-lo de uma forma seguida, com a ilação necessária para conservar-lhe a importância que os fatos lhe deram. O momento parece-me agora oportuno para esta referência.

Em todas as cidades e povoações da Galiléia reuniam-se, em dias fixos, homens de boa vontade com o objetivo de fazer leitura da lei e explicar seu espírito. Estas assembléias livres, em que todos podiam pedir e obter a palavra, adquiriam novos elementos de discussão com a presença de oradores estranhos ao lugar. Estas assembléias chamavam-se sinagogas. As sinagogas convertiam-se freqüentemente em ponto de reunião dos que procuravam popularidade, e não estava em realidade a gente suficientemente compenetrada da santidade do lugar. Deixando de lado estes abusos inevitáveis, a sinagoga oferecia o quadro consolador da ligação do mundo religioso com o mundo material, da humanidade que se humilha diante de Deus, com o fim de pedir-lhe a ciência para compreendê-lo e adorá-lo.

Certa ocasião em que eu visitava uma sinagoga no perímetro que se estendia de Tiberíades a Cafarnaum, senti-me quase importunado pela atenção de que me fazia objeto uma mulher. Essa mulher, colocada em minha frente e a curta distância, dirigia-me um olhar, cuja luz e persistência obrigavam-me a baixar o meu. Esta mulher era alta, jovem e bela. Esta mulher, nascida na Galiléia, havia chegado recentemente de Sídon. Tendo ouvido falar a meu respeito, divertiu-se muito ao saber das prerrogativas que eu atribuía a mim mesmo; depois ela pretendeu estudar-me primeiro para unir-me depois à vergonha de sua vida. A terceira experiência de Maria relativa à minha pessoa teve por efeito fazer-me sua alma querida e que esse espírito, ainda distante da alma, pareceu-me digno de alcançá-la. A alma de Maria sofria pela abjeção de seu espírito. O espírito de Maria estava pervertido pelo amor impuro, bestial e delituoso dos homens. Quis dar a essa alma e a esse espírito o impulso de um amor que resplandece da chama divina, para resplandecer na imortalidade do porvir; mas, ai! Maria, dando o adeus, para sempre, aos seus desejos de loucas uniões e de alegrias intemperantes, caiu sob o jugo de uma paixão humana, da qual a alma não teve consciência, e que o espírito se obstinou em chamar paixão divina.

Depois do nosso terceiro encontro, Maria pediu-me permissão para seguir-me como faziam algumas outras piedosas mulheres que se juntavam aos meus discípulos. Eu consenti e prometi facilitar-lhe sua conversão com meus conselhos e meu apoio. Muito tempo depois me apercebi do amor carnal de Maria.

Deus deu-me a força para manter-me em minha posição de pai e de consolador; mas ela, pobre mártir, tinha que esgotar todas as amarguras do remorso, sofrer todos os desvanecimentos do espírito, todas as desesperações da alma.

Maria de Magdala levava uma vida desordenada, andava já por sete anos, quando a conheci. Ela confessou-me seu envilecimento sem acrescentar à sua confissão detalhes fastidiosos, que nos teriam embaraçado, e em seguida narrou-me sua infância com a delicada franqueza de uma alma ingênua e pura. Eu nunca me havia enganado em meus primeiros juízos a respeito deste conjunto de graças comovedoras e de crueldades vergonhosas. Eu não me enganava descobrindo um tipo nobre e casto sob a nódoa de imundos amores. Mas caí no engano ao crer que Maria seria toda de Deus, e tive necessidade de ser amparado por poderosas alianças espirituais para não ser vencido por uma afeição terrestre. Maria tinha vinte e quatro anos quando a vi pela primeira vez. Quando minha mãe veio a Cafarnaum, Maria de Magdala já havia sido recebida por meus discípulos e constatei com alegria o acolhimento natural e benévolo das duas mulheres que amei mais que tudo sobre a terra. Quando tive que demonstrar aspereza à minha mãe porque queria fazer-me renunciar a meus trabalhos de apóstolo, encontrei Maria banhada em lágrimas entre os braços da abandonada. Elas prometiam-se mutuamente uma dedicação inalterável e mantiveram sua palavra.

Maria não se encontrou comigo nas núpcias de Canaã, porém, acompanhou-me em minha última visita a Nazareth e nunca mais me deixou desde então. Voltaremos a vê-la em Jerusalém e a introduziremos na casa de Betânia, onde foi testemunha de tudo o que se passou entre a família de Simão e eu.

Esta família, constituída de três pessoas, cumulava-me de cuidados e de respeitosa ternura, multiplicava-se externamente com naturais afinidades e com simpáticas relações sociais. Esta família de três pessoas, cujos corações eu tinha reanimado e iluminado os espíritos, demonstrava-me diante de todos a homenagem de uma gratidão entusiasta, e é a um excesso de honras tributadas a meu caráter de apóstolo que deve meu amigo a mancha que acompanha sua lembrança entre os homens.

No número dos parentes de Simão, cuja lembrança me é cara, cito Dalila, esposa de um irmão de Marta, Eleazar, primo de Simão e Alfeu, também primo de Simão, porém que vivia em Jerusalém, ao passo que Eleazar habitava em suas cercanias. Do mesmo modo que Simão, também Eleazar não era leproso.

Alfeu tornou-se um dos meus fervorosos discípulos. Era um homem de elevada moralidade e lhe sou devedor de tanta felicidade íntima pela união de nossos espíritos, como de gratidão pelos atos exteriores de sua obsequiosidade.

Dalila, santa e sublime mulher; Ana, minha querida Ana, sempre tão ativa e enérgica, recebei as duas, aqui, o testemunho de minha palavra como reconhecimento de vossa virtude na fé e no amor!

Ana não fazia parte do parentesco de Simão; mas ela e seu marido foram-me dedicados desde a época em que os encontrei na casa de Betânia; o marido prestou-me muitos serviços em Jerusalém. Chamava-se Gabes.

Meus amigos de Jerusalém palmilhavam com freqüência o caminho de minha morada em Betânia, por haver julgado eu, depois de alguns dias de agitação, que se tornaria necessário afastar-me do meio das massas para fazer que meus discípulos se compenetrassem melhor da grandeza do ato que estava para cumprir. Eu o procurava assim com graves discursos, com a solenidade do enviado divino, com formas simbólicas, com palavras profundas e fáceis de interpretar de diferentes maneiras, para reunir todos os homens, fortes e fracos, livres e supersticiosos, no sentimento de meu elevado destino. Se tivesse falado unicamente de maneira a fazer-me compreender dos que raciocinavam a respeito de minhas doutrinas e dos títulos que eu tomava, haveria fracassado ante a posteridade e minha luz ter-se-ia apagado com o sopro do furacão que estava por arrebatar-me corporalmente.

Eram-me necessários os partidários do maravilhoso para sustentar o pedestal sobre o qual se levantaria minha filiação divina. Eram-me necessárias massas ignorantes para arrastar as fantasmagorias dos homens mais ou menos sinceros em seus juízos, mais ou menos interessados em seus cálculos. Eu compreendia a necessidade de empregar um silêncio hábil com respeito aos erros que assinalariam minha personalidade com um distintivo divino, e o interesse do porvir seria o que me indicaria as atitudes que devia tomar, os gestos, a frieza, a força, em meio das demonstrações furiosas, das acusações estúpidas brotadas do ódio, da embriaguez amorosa, dos dislates da credulidade, da alteração das leis naturais. Porém, confiava no meu caráter de Messias para aplainar o caminho a meus sucessores, contando com sua clarividência e com sua probidade. Eu queria, ao oferecer-me como vítima sobre o altar de Deus, agitar mais e mais essa multidão de ímpios e delinqüentes que em todos os tempos sujam seus lábios com a mentira e fazem transbordar o ódio de seus corações; porém tinha sobretudo em vista o confiar a meus fiéis mais inteligentes a consolidação de minha obra depois de minha morte.

“Esta obra é vossa obra, eu dizia-lhes. Meu Pai nos abençoará  juntos e a graça nos fará os guardiães do porvir até à consumação dos séculos. A graça adquire-se com a renovação das provas e com os espontâneos impulsos da alma para as verdades eternas.

“A graça converte-se no santuário do pensamento, na barreira  intransponível da virtude, quando o pensamento se alimentou, de habitação em habitação, com as investigações intelectuais do espírito, referentes à sua sorte, e quando também a virtude aumentou, de etapa em etapa, com a segurança de sua marcha no meio da escuridão e dos perigos.

“O pensamento não se apaga. Segue através dos mundos  comunica-se nos espaços, liga entre si os espíritos, sanciona o princípio de fraternidade e realiza milagres de amor.

“Permanecei, pois, convencidos de minha presença, ainda quando   já não me vejais, e chamai-me sempre o Senhor nosso Pai; reparti o pão e o vinho, como se meu corpo ocupasse o lugar que hoje ocupa, e dizei: este é seu sangue; esta é sua carne. E meu espírito se alegrará e o lugar vazio será ocupado, porque o desejo determina o desejo e o pensamento se introduz no pensamento,
                    mediante o mútuo desejo.

“Agora vos digo: A graça obtém-se com a fé e com o amor. Aquele   que crê em minha palavra que dê às minhas palavras um sentido que eu não lhes dou agora, com o propósito de semear divisões entre os homens para tomar uma posição de autoridade no mundo, se converterá em meu inimigo e eu lutarei contra ele e derrubarei seus projetos. Suceda isto em um tempo ou em outro, Deus medirá a intensidade da derrota a infligir-se de acordo com a duração da ofensa. Deus fará resplandecer sua luz no meio das trevas de acordo com a quota dos desejos que se agitarem no seio das sombras e com a quota dos pedidos que se tenham formado. Então Deus chamará a seu filho amado e o filho voltará em espírito entre vós, e línguas de fogo passarão sobre vossas cabeças, para instruir os homens de boa vontade, como eu faço hoje.”
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Nicodemus dava às suas visitas uma forma misteriosa que acusavam seu coração e seu espírito de fraqueza e de considerações humanas. Favorável a meus projetos do porvir, temia as efervescências do momento. Admirador apaixonado de minha doutrina, não se haveria, sem embargo, atrevido a sustentá-la diante dos demais; porém comigo e com meus discípulos, Nicodemus expandia-se e levava aos espíritos a convicção de que se sentia honrado por minha amizade, porque eu mesmo me via honrado pela filiação divina.

José de Arimatéia amparava-me com todo o calor de sua alma, com toda a veemência de um pai terno e infatigável, como assim também com toda a sua importância social. Fazia causa comum comigo e se haveria também exposto à morte, se eu não lhe houvesse demonstrado, de uma maneira peremptória, a inutilidade de seu sacrifício e a necessidade, pelo contrário, de seu concurso depois do meu desaparecimento. José de Arimatéia era com quem eu mais contava para dirigir o que eu havia fundado e tudo o que pretendia afirmar com minha morte corporal e com minha ressurreição em espírito.

José era o meu confidente mais seguro e precisava de sua inteligência para tirar partido das menores circunstâncias favoráveis à nossa causa, como também de sua dedicação em cumprir e em fazer cumprir minhas últimas disposições. José me havia recebido menino para ajudar os desígnios de Deus a meu respeito; ele teria também que, ao receber meu corpo privado de vida, continuar a servir a Providência com os obstáculos que poria aos propósitos delituosos dos homens.

Marcos pertencia a uma família de boa posição de Jerusalém. O pai ocupava um emprego importante de governo apesar de ser hebreu, porque os romanos nesses tempos não estabeleciam diferenças entre os homens de nacionalidade e religião diferentes, sempre que eles lhes pareciam merecer serem elevados, pela inteligência do espírito e elevação do caráter. Os romanos, por outra parte, desdenhavam a opinião dos homens que submetiam sob seu domínio, e buscavam sempre os mais hábeis para desempenhar os deveres dos cargos importantes.

Jerusalém tinha sido agitada por graves sedições populares; porém, na hora a que chegamos, ela apresentava um aspecto de completa calma. Persuadidos da inutilidade de seus esforços, os hebreus suportavam com paciência um despotismo orgulhoso. Este despotismo não chegava a exercer pressão sobre as crenças religiosas, pois, pelo contrário, todos os credos encontravam apoio na indiferença dos governos. Jerusalém, como todas as dependências do Império, encontrava-se sob a tutela de um depositário dos poderes de César, governante sem controle e absoluto, em seus juízos como em suas disposições. A responsabilidade da administração civil pertencia, certamente, a uma magistratura tirada das escolas sustentadas pelo Estado, porém a mesma lei se curvava diante destes invasores arrogantes, que não conheciam outra moral a não ser a sua própria vontade e não conheciam outro obstáculo para sua vontade que o da força material.O direito, a lei, eram letra morta para esses bárbaros quando se tratava de satisfazer um capricho do superior ou de esmagar um escravo rebelde. Os tempos destes bárbaros atropelos não desapareceram ainda e isto é o que me faz deter aqui para condená-los. A guerra e seus horrores devastam ainda o mundo da Terra; eis por que aproveito a ocasião para amaldiçoar as instituições de minha época; eis por que me refiro à história geral ao escrever a minha.

Para ingressar nas escolas era necessário ser parente próximo de algum soldado morto ao serviço da pátria ou que se encontrasse ainda sob as armas. Qualquer outra consideração, como seja: condição social, religião, nacionalidade, não tinha importância. Os estudantes tinham que exercitar-se no manejo das armas e recebiam uma soma em dinheiro se se alistassem voluntariamente. O serviço militar obrigatório não estava em vigor para eles.

Marcos, o estudante, era quase um revolucionário, tanto detestava todas as opressões. Eu o conduzi para o sentimento religioso, fazendo-o saborear os atrativos de uma doutrina que ensinava a fraternidade entre os homens sob a dependência da paternidade divina, que aconselhava o valor na adversidade, a modéstia no meio da fortuna, o desprezo pelas injúrias, a comiseração para todos os culpados. Marcos não me amou, senão que me adorou. Eu havia-me ligado muito facilmente a duas naturezas ingratas. Recolhi horríveis desenganos, devido principalmente à minha primitiva facilidade de observação.

Derramei amargas lágrimas pela fragilidade de algumas relações, pela fraqueza de minhas preferências, mas gozei também das delícias de profundos e duradouros afetos, e nesta história, com freqüência penosa, elas voltam à minha memória, com emoções igualmente agradáveis, às que experimentava quando a sua realidade reanimava meu espírito intumescido, consolava meu coração, levantava minha coragem, apresentando-me à Humanidade sob seu mais nobre aspecto.

Marcos esqueceu por mim sua fortuna, que não podia oferecer-me, porque ainda não gozava dela, sua família, que o tratava como um visionário, seus companheiros de prazeres, seus hábitos ociosos, suas fantasias, suas distrações e também suas horas de trabalho, que dizia substituí-las vantajosamente permanecendo a meu lado. O belo caráter de Marcos deveria ter produzido a mais favorável impressão em meus discípulos; pelo contrário, muitos tiveram ciúmes devido ao nosso recíproco afeto; outros não viram no abandono de sua posição mundana mais que uma fraqueza momentânea de suas faculdades intelectuais; outros procuraram os motivos deste abandono na paixão que devia ter-lhes inspirado alguma das mulheres que faziam parte do círculo de meus ouvintes.

Em troca José de Arimatéia regozijava-se do que ele chamava uma conversão, e os mais clarividentes, os mais preparados, amaram e respeitaram ao valoroso discípulo de Jesus, que o seguiu até o Calvário, que beijou seu corpo ensangüentado e desfigurado, que ajudou a José e a Nicodemus na tarefa noturna, que morreu jovem, oprimido pela dor, cheio de esperanças, porque Jesus tinha morrido e ele bem depressa tornaria a vê-lo.

A facilidade de juntar-nos dava atrativo às nossas reuniões e nossa liberdade não foi nunca perturbada por visitantes indiscretos, nem por preocupações de perigos imediatos. Meus discípulos de Galiléia e eu formávamos uma só família. Nesta família é preciso incluir as mulheres vindas também da Galiléia, a qual constituía um conjunto bastante complexo; porém a casa de Simão era vasta, posto que muitas casas coloniais dependiam da habitação principal.

Nomeemos as mulheres vindas de minha querida Galiléia para servirem-me até à minha morte. Passemos rapidamente por cima das primeiras informações e fechemos este capítulo, irmãos meus, com o sentimento de nossa grandeza espiritual. Breve nos tornaremos a ver por efeito desta grandeza, que derrama a luz divina sobre as fraquezas humanas. As mulheres  vindas da Galiléia eram: Salomé, Verônica, Joana, Débora, Fatmé e finalmente Maria de Magdala. De Salomé já falei; Verônica era viúva, ela havia cuidado de mim como a um irmão e respeitado como a um apóstolo de Deus, desde os primeiros dias de minha permanência em Cafarnaum. Joana, Débora, Fatmé, muito jovens para encontrarem-se ao abrigo das calúnias, riam-se delas, porém com afabilidade, derramando sobre todas, e sem preferências, os atrativos de sua espiritualidade, a generosidade de seus corações.

As três gozavam de um discreto bem-estar e diziam, rindo-se, que nós éramos seus irmãos e nos correspondia uma parte desse bem-estar, como mais tarde o teríamos no reino de Deus.

Minha mãe encontrava-se em Jerusalém desde alguns dias, porém eu não o sabia. Eu havia-lhe exigido o sacrifício de que não me seguisse e que esperasse um aviso meu. Porém Maria de Magdala mantinha relações com minha mãe, e, para combinar melhor os meios de arrancar-me à morte, ela pediu com insistência para que se trasladasse para uma casa das proximidades de Jerusalém. Meus irmãos José e Andréa foram também a Jerusalém. O firme propósito deles era o de apostrofar-me e de desmentir publicamente minhas palavras, insinuar à multidão de que eu me encontrava tomado de loucura, para reclamarem a força a fim de separarem-me da companhia de meus discípulos. Esta conspiração era por mim bem conhecida, assim é que preparei-me para fazê-la fracassar e resolvi para este fim permanecer mais tranqüilo ainda em meu retiro. As duas Marias ignoravam o projeto de meus irmãos. Elas tinham esperanças na intensidade de seu amor, para fazer-me descer da glória de Messias à ignomínia da fraqueza. Para mim, o perigo era este e a luta tinha que ser horrível.

Irmãos meus, no duodécimo capítulo deste livro vos exporei minhas últimas lutas da carne com o espírito; minhas supremas angústias de homem; minhas indecisões no sacrifício e, finalmente, a vitória definitiva da espiritualidade sobre a matéria.

Nós faremos também de minha morte, precedida de tantas tentações dirigidas à natureza humana, o objeto de um estudo profundo sobre o martírio imposto a um homem pelo homem, e tiraremos esta conclusão indestrutível, que a vida humana encontra-se sob a dependência de Deus, e que destruí-la é infligir um insulto ao Criador.

Irmãos meus, vos abençôo em nome de Deus nosso Pai

¹  Quer dizer que não seja dominado pelo apego à vida material, senão que se mantenha superior ao instinto de conservação e a todas as atrações, gostos e desejos da vida dos sentidos. — Nota do Sr. Rebaudi.


² Do mesmo modo falam os teósofos, ao passo que os espíritas, de acordo com as palavras do mesmo Jesus, “Não coloqueis a lâmpada debaixo do alqueire”, praticam a mais ampla propaganda de seus ideais. Os modernos espiritualistas, pelo contrário, tomam o caminho do meio termo e talvez interpretem melhor assim a idéia de Jesus. — Nota do Sr.Rebaudi.