Irmãos meus, as
causas de minha morte podem definir-se assim:
“O delito de Jesus, no passado, foi o de
facilitar as sedições populares,
propalando por intermédio dos sacerdotes, suspeitas de conivência com os
pagãos.
“O delito de Jesus, mais tarde, foi sua
inclinação para o culto fundado pelo
próprio Deus, e esta inclinação para o culto resultou de maior gravidade e de
maior poder de sedução pela qualidade de filho de Deus que Jesus se atribuía.
“A lei mosaica tinha que alcançar a Jesus a
quem tinham que infligir-lhe o suplício
da lapidação. Porém, a opinião da casta sacerdotal precisava da adesão dessa
mesma autoridade que com freqüência se desinteressava das questões que
suscitavam entre os hebreus, e precisava-se também do concurso popular para o
cumprimento da vingança do clero. Pelo que tomaram-se das últimas pregações de
Jesus provas de culpabilidade como perturbador e abolicionista das leis civis,
além das religiosas, para fazê-lo cair sob a jurisdição de Pôncio Pilatos, procurador
romano. E perante o povo Jesus foi acusado de sedução e pacto com o espírito
das trevas”.
Refiro aqui os
motivos de minha condenação, motivos cujo valor discutirei depois, ao mesmo
tempo que darei uma explicação de cada um dos delitos que me imputavam, por
efeito de uma reprodução inexata de meus ensinamentos. Isto nos conduzirá a
extensas explicações e terei que honrar a coragem de meu intérprete, que
sofrerá por estes minuciosos detalhes, mais do que tenha sofrido por causa das
anteriores pressões de meu espírito.
José e Andréia
preparavam as humilhações que amarguei mais tarde, referindo lamentáveis
episódios de minha infância, referentes aos últimos dias de meu pai e ao
abandono de minha mãe. Eles agregaram à expressão de sua falsa piedade pelo que
designavam como minha pobreza intelectual, a difamação de minha vida íntima e
de minha qualidade de filho de Deus, por meio de vis espionagens, com juízos
desleais e com uma designação burlesca em lugar da que eu havia tomado.
Não busquemos, irmãos
meus, nos livros do antigo estilo uma explicação do título de filho do homem,
que se me outorgou por escárnio, como acabo de dizer. Desembaracemo-nos das tenebrosas
histórias para poder elevar nossa narração até à simplicidade do espírito, que
tudo o esclarece, Não levantemos, por outra parte, uma desaprovação demasiado
severa sobre certas personalidades desde que o fermento das idéias e o impulso
do espírito resultam muito a miúdo de causas obscuras para a inteligência
humana.
Defendamos nossa alma
e nosso espírito contra todos os entusiasmos e contra todo o preconcebido. Façamos
distinção entre as diversas graduações, porém não maldigamos ninguém. Façamos
da vida de Jesus um código de moralidade para todos os homens e esforcemo-nos
em demonstrar que a vida humana deve ser respeitada, porque ela é uma emanação
da alma divina. A vida humana encerrada nos limites impostos pelo Criador é um
descanso em meio do caminho da imortalidade. A vida humana deformada pelo
vício, encurtada pelos excessos, torturada pelos ódios, despedaçada pelo
delito, representa uma espantosa falta de razão que revela a bestialidade da
natureza, ainda não domada a tendência para a bestialidade primitiva, por causa
de um regresso na ordem ascensional; as duas, bestialidade de natureza e
bestialidade regressiva, constituem os verdadeiros flagelos do mundo. A
primeira revela a força brutal da besta; a outra dirige as tendências da besta
como que para fazê-las mais mortíferas. As duas desenvolvem, mediante o
contato, os males asquerosos da alma, do espírito e do corpo; as duas marcham
entre o sangue, alimentam-se de orgias, adormecem, vencidas pela saciedade,
sobre ruínas.
Representando-vos a
Jesus nos últimos momentos de sua vida de Messias, irmãos meus, não alimento a
idéia de chamar vossa atenção tão-somente sobre Jesus, porém, sim, peço que todos
os que leiam estas páginas reflexionem profundamente a respeito dos
ensinamentos que elas oferecem à sua consideração. Não tenho mais que um
propósito, e este é o de converter em melhores aos homens, propósito que será
alcançado se eles meditarem sobre minhas palavras.
Defino as feridas de
minha alma para caracterizar a aproximação que existe entre as almas humanas.
Explico a culpável intenção dos que me desconheceram para voltar a trazer para
uma suave resignação aos que se vêem caluniados. Declaro inimigos meus aos
perspicazes, aos orgulhosos, aos depravados, reconhecendo em troca como novos
discípulos aos homens de boa vontade, aos humildes, aos deserdados de bens do
mundo, aos famintos dos tesouros eternos. Sempre digo: O que não é por mim é
contra mim. Felizes os que fazem provisões para a vida futura e que caem na
pobreza voluntariamente durante a vida presente; o reino de Deus pertence-lhes.
Buscai, e
encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á. A luz e a verdade são dons de Deus,
espalhai-as amplamente entre todos os que as solicitam, com o ardor de uma alma
livre e com um espírito desejoso das cousas celestes.
Porquanto eu sou
sempre o Messias, filho de Deus, que baixa da luz para amparar tudo o que já
amparei, para defender tudo o que já defendi, para combater tudo o que por mim
já foi combatido.
Porquanto eu venho
para destruir e para reconstruir, para demonstrar a meus discípulos qual é o
reino a que eles devem aspirar. Tal reino não é deste mundo. Não há mais lugar
para equívocos. O espírito liberto das sombras da natureza humana ilumina-se de
luz divina, não lhe sendo já possível desviar-se por ignorância nem diminuir-se
por temor das crueldades dos espíritos humanos. Este espírito, desde a elevação
no meio da qual Deus o admitira, baixa a este mundo para trazer-vos a concórdia
e a esperança, proclamar a imortalidade e o amor universal, em nome de Deus.
Volvamos, irmãos meus, ao ponto em que vos deixei no final de meu último
capítulo.
A tranqüilidade de
que eu gozava na Betânia parecia-se ao silêncio que precede às explosões,
porque em Jerusalém, o ódio surdo dos sacerdotes começava a manifestar-se
ostensivamente e o povo, de cujas simpatias eu gozava desde as bravatas que
lançara nas proximidades do Templo, prestava ouvidos complacentes aos murmúrios
que se faziam correr a respeito da inépcia e falsa virtude de minhas máximas,
da vaidosa pretensão de meu espírito, que eu me haveria comprazido em
evidenciar, conjuntamente com as demonstrações de minha pobreza e abnegação
corporal.
Minha mãe
encontrava-se em Jerusalém devido a um chamado de Maria de Magdala. Ela era
tomada nesses momentos duma inquebrantável vontade. Negou-se a voltar para
Nazareth e me vi obrigado a contemplar até minha morte essa sua tristeza que constituía
uma viva censura para meu sacrifício, essa dor que penetrava em minha alma,
enfraquecendo-a. Maria de Magdala empregava, ante mim e minha mãe, toda essa
energia que pode arrancar-se da paixão e de toda essa doçura e suavidade que
nasce da prece. Retorcia-se nos espasmos do desespero ou ajoelhava-se piedosamente
para pedir a Deus o poder de abalar minha resolução. Ela arrojava-se a meus
pés, para manifestar me, com voz baixa e trêmula, toda a felicidade de um amor
puro, porem invasor dos ímpetos da alma e das faculdades do espírito. Depois levantava-se,
abraçava minha mãe e cobria-a de beijos frenéticos e suplicava-me que salvasse
as duas da morte e do inferno, aonde seriam arrojadas por meu suplício e minha
glória.
A repetição de tais
demonstrações produzia no meu espírito o efeito de acidentes que interrompem o
curso dos pensamentos. Sentia-me prostrado pela emoção quando algum feliz abalo
vinha arrancar-me dos braços maternos que pretendiam reter-me com seu contato
ardente, capaz de tornar-me louco ou covarde.
Maria de Magdala não
era estimada somente por minha mãe: todos os meus discípulos e as mulheres
vindas da Galiléia a estimavam. Marta, Simão, a jovem Maria notavam nela as
sólidas condições da mulher desenganada e cansada dos prazeres mundanos, ao
mesmo tempo que descobriam-lhe o semblante resplandecente pela graça e suaves
condições da alma. Maria de Magdala era mais instruída que a maior parte dos
que me rodeavam. Ela me era devedora do desenvolvimento de seu espírito e da
certeza de seu conhecimento, porém, ainda antes de nos havermos encontrado, ela
possuía já mais conhecimentos do que possuíam em geral as mulheres desse tempo.
Maria teria sido perfeita sem a concentração de sua alma para uma pessoa, se
bem que amava, apesar de tudo, a Deus com sinceridade. — Pobre Humanidade!
Propus a minha mãe
que me acompanhasse a Betânia, para que não oferecesse a meus irmãos um apoio
com sua presença, porquanto não dissipava neles o desatinado propósito de
seguirem-me. Pus deste modo fim às nossas penosas reuniões. Minha mãe
dedicava-me mais carinho do que aos seus outros filhos. A elevada opinião que
ela formara a respeito de meu destino, quando meu tio Tiago quis participar de
meus trabalhos e de meus perigos, serviu para exaltar esse sentimento filho dos
cuidados e inquietações que lhe havia proporcionado o mais débil e menos
simpático dos membros de sua numerosa família.
Depois de nossa
última entrevista em Nazareth, minha mãe alimentava um só desejo: salvar-me da
morte. A descoberta que ela fez do profundo afeto de Maria proporcionou-lhe uma
esperança à qual associou todos os outros recursos pessoais, que considerou
úteis para seus fins. — Mãe infeliz! — Cem vezes mais infeliz que se houvesse
compreendido desde o princípio a inutilidade de seus esforços. — Mártir
humilde! — Mártir cujo martírio foi cem vezes mais cruel do que se houvesse
aceitado, como uma ordem de Deus, a renúncia e a separação.
Irmãos meus, a
expansão de uma alma de Deus não basta para dar-lhe a suprema compreensão da
fé, e minha mãe, minha terna mãe, impregnada das teorias de uma religião
imperfeita, não podia, apesar de sua confiança em mim, renunciar a tudo o que havia
acreditado e praticado até então.
A liberdade da alma
adquire-se por meio da força intelectual do espírito. Por força intelectual não
entendo as aptidões mais ou menos pronunciadas para o estudo das ciências exatas,
senão o impulso positivo da idéia para a solução de tal ou qual problema
colocado no campo do infinito; entendo determinar a força intelectual do
espírito, alimentando-a com o desejo fervoroso de conhecer as origens e
imprimindo-lhe o cunho de uma vontade inalterável de avançar sempre e mais.
Repelir uma crença
que se apóia tão-somente sobre velhos preconceitos e errôneas referências, para
abraçar uma fé radiante de verdade, no meio de um céu de luz fascinadora e
infinita, é um fato que não pode produzir-se senão com a derrocada das aspirações
materiais, com a absorção do princípio terrestre do espírito efetuado pelo
princípio espiritual do mesmo espírito. É então que se rompem as sujeições da
alma e que ela, possuída de sua liberdade, segue o espírito que se encontra na
posse de suas forças.
Deus não se revela à
alma que, embora amante, se torna escrava de um espírito que age unicamente por
solicitações e não por própria ciência e consciência. Deus, pois, não se
revelava se não em parte, à mulher piedosa, porém ignorante das fadigas que
transportam para as delícias da fé, dessa fé sem contradições e sem terrores,
que paira acima dos perigos e sorri no meio das torturas, que recebe luz de
origem divina para cumprir todos os deveres, destruir todas as humilhações,
avançar para todos os heroísmos.
Se minha mãe houvesse
facilitado minha missão com sua fé, irmãos meus, ter-me-ia poupado uma grande
amargura durante as lutas de meus últimos dias, entre as recordações da vida
que fugia e as promessas da vida que se aproximava. Se minha mãe e Maria de
Magdala se tivessem associado em toda a plenitude da fé, dentro de minhas
crenças, meu espírito ter-se-ia mantido à altura de minha família espiritual,
mas pelo contrário a tendência carnal desses dois amores diminuiu minhas forças
e preparou minha fraqueza sobre o madeiro do sacrifício. Minha fé não se dobrou.
Quando a fé se estabelece sobre a realidade demonstrada materialmente, não pode
enfraquecer-se; mas a natureza humana humilhava tão profundamente o espírito
agitado sob a pressão das fantasias contraditórias, que tinha que fazer um
esforço para reconquistar essa liberdade tão querida e tão necessária para um apóstolo
de Deus.
A dependência dos
espíritos aumenta em relação com a inferioridade do mundo em que habitam, e
acrescento que apesar das luzes espirituais e da força intelectual de um
espírito, ele tem que sofrer mais ou menos deploravelmente pelas sombras
lançadas sobre seu ideal e pelos assaltos dados às suas convicções, em um mundo
em que todas as crenças religiosas se traduzem tão somente com demonstrações
referentes ao passado, ao porvir, ao presente e à honra do espírito.
A família dos homens
é constituída de alianças sem homogeneidade e sem força coletiva para alcançar
seu objetivo. Estas alianças se convertem em lamentáveis provas para os espíritos
honrados com a elevação alcançada precedentemente na jerarquia moral e intelectual.
No exercício de sua
liberdade o espírito encontra a calma necessária para a sua fé, o ardor para as
concepções atrevidas e a decisão para dirigir sua obra. Porém, pode acaso esta
liberdade ser completa e duradoura? Desgraçadamente, não! — Não, porque a triste
dependência dos espíritos, uns dos outros, deve existir para o estabelecimento
da justiça de Deus nos mundos em que a destruição das espécies inferiores por
outras espécies superiores, assinala uma marcha progressiva até chegar ao
homem; nos mundos em que a enorme desproporção dos espíritos entre si provém de
causas laboriosamente definida pela ciência que demonstramos, ciência que
reconhece a imutabilidade das leis naturais. Agora, constituindo uma lei deste
mundo a dependência material para os espíritos, ninguém pode iludi-la, e o
espírito superior que se encontra aqui de passagem, conquista uma liberdade
provisória ou se entristece na escravidão de sua vontade.
As fraquezas da fé
são inerentes a toda a crença sustentada com o auxílio de concessões da razão.
As fraquezas na fé constituem motivos de constantes esforços para todos os que
praticam uma religião sem compreendê-la. O fanatismo, que consiste em uma fé ardente
privada da razão, deve ser considerado como uma enfermidade do espírito. A fé
verdadeira jamais se separa da razão. Ela assinala uma personalidade convencida
dos atributos divinos e esta personalidade vê-se obrigada a curvar-se perante
os deveres que daí lhe resultam.
Qualquer que seja a
causa diretriz do dever, ela é o resultado de lutas, de claudicações, de faltas
anteriores do espírito, e os deveres futuros do mesmo espírito se constituirão
do mesmo modo, sobre a base de seus meios atuais.
Somente com muita lentidão
a natureza humana pode desprender-se de suas tendências carnais, pois só a fé
verdadeira proporciona o estímulo da coragem, a perseverança nas empresas, o
desprezo pelos perigos, e o estudo dos deveres torna-se cada vez mais fácil, a
matéria desgasta-se ao conquistar o espírito novas posições, o qual se eleva de
etapa em etapa até o aniquilamento da matéria.
Irmãos meus, a fé
verdadeira honra a inteligência laboriosa que percorreu diversos caminhos, os
quais lhe serviram de protetores. A fé verdadeira é o prêmio de todos os
espíritos anciãos, cujo adiantamento intelectual não se vê deprimido pela
decadência moral.
Fé resplandecente! Tu
nos confias o segredo de nossos destinos. Tu nos dás a explicação de Deus, da
sublimidade de suas leis, do poder de sua justiça e de seu amor; tu apontas o
dever com a certeza de seres compreendida... O dever descansa no cumprimento da
lei geral e nas obrigações morais, estabelecidas em nome dos princípios do
direito individual. A lei geral, princípio de direito individual, emancipação,
deduzida de uma criação inteligente; imortalidade, conseqüência da perfectibilidade;
vós exibis o espírito humano ao desprezo das grandezas universais, porque o
espírito humano pratica ou aprova o homicídio.
A família humana
ultrapassa todos os erros da razão, quando afirma o direito de morte. Deus,
árbitro soberano dos espíritos, concede-lhes o corpo como instrumento, e o
corpo conserva-se mais ou menos tempo, segundo a direção que lhe é impressa
pelo espírito e o lugar habitado pelo espírito e pelo corpo.
Decrescimento
antecipado de forças, ou debilidade de nascimento, intermitência de saúde e de
enfermidade, desenvolvimento feliz ou extenuação prolongada, amplitude de manifestação
ou opressão servil, decadência natural ou acidentes fortuitos, tudo isto
demonstra o cansaço atual ou o cansaço precedente, tudo isto explica a
disciplina universal por meio da prova e da reabilitação, e rechaça os nomes,
os mais monstruosamente estúpidos como: Deus dos exércitos, Deus vingador, Deus
ciumento, Deus terrível.
Vis assassinos,
defensores embrutecidos de uma causa má, defensores sagazes de uma causa
incompreensível, heresiarcas realmente convencidos ou valentes apóstolos de uma
falsa religião, que julgais verdadeira, todos vós sois mais ou menos culpados
diante de Deus e Deus vos julgará.
Delinqüente
endurecido, hás de permanecer perturbado enquanto não apareça o arrependimento
como indício de castigo e a expiação voluntária te seja levada em conta como
atenuante. Mas, chegado a este ponto, poderás trabalhar sob as vistas de Deus e
teu trabalho será recompensado. Pobre ignorante! Hás de vegetar entre
inquietações e indecisões, até à aparição de uma luz distante que irá
aproximando-se e tornando-se cada vez mais visível.
Livres ou
encarcerados, mestres de verdade, discípulos conscientes do erro, Deus vos terá
em conta as circunstâncias desses erros, da causa de vossas fraquezas e
reparareis vossas culpas e gozareis das honras devidas às reparações. Assim é a
justiça de Deus. Ela levanta os maiores culpados, ordena a emancipação, leva em
conta os trabalhos, pesa os atos de valor, prepara novas glórias a seus
Messias, depois de haver purificado seus espíritos, ofuscados pelas glórias precedentes.
Justiça dos homens,
quando chegarás a ser uma cópia da justiça de Deus?
(Irmãos meus, emprego
aqui a palavra justiça, para designar vossa força social; mas vossa força
social, encontrando-se privada da idéia que representa a palavra justiça,
reconheço que esta palavra é deficiente e continuarei empregando-a tão-só para ser
compreendido.)
Justiça dos homens, a
que deixa envilecer-se com todos os vícios uma forma humana, e que, em um
momento dado, toma esta forma humana e mata sob o pretexto de dar um exemplo de
que precisa a sociedade, embebida das mais abomináveis máximas de imoralidade e
desprovida do sentido intelectual até o ponto de, por uma parte, os mandamentos
de Deus, continuamente repetidos, não serem jamais observados, e, por outra
parte, negar-se a existência de Deus; justiça dos homens, a que decreta a morte
com o sentimento do dever cumprido, que se apóia na mentira ao invocar a Deus
para matar, e que resulta sempre como uma conseqüência dos instintos da
natureza bestial, qualquer que seja a crença religiosa de que se alardeie!
Depositários da força
social, os postos que vós ocupais neste mundo de provas são conseqüência
natural das dependências humanas e preparam outras dependências humanas. A
expressão de vosso poder, não havendo tido jamais causa motriz à emancipação
dos espíritos e à justa distribuição dos auxílios materiais, constituirá sempre
uma vergonha e uma condenação para vós.
Alcançareis o
sentimento de vossa inferioridade na lembrança das explosões de vaidade de
vosso orgulho e sofrereis a terrível pena de talião, aplicada inexoravelmente
em todos os casos de sangue derramado deliberadamente ou com a fria crueldade
de uma inteligência humana. Eis, ó depositários da força social!, os castigos
aplicados a todos os homens que tenham dirigido outros homens, sem antes
iluminarem-se com o sentido moral e intelectual dos seres superiores.
Justiça de Deus, a
misericórdia te acompanha, posto que deixas uma porta aberta para o
arrependimento. Justiça dos homens, acompanha-te a mais espantosa demência,
pois que, ou nada sabes da imortalidade, e então jogas a um precipício sem fundo
todos os pensamentos cuja origem não podes explicar, essas pulsações que fazem
palpitar outros corações, essas forças que parecem destinadas a
produzir mais do que têm produzido até este momento,¹ ou tens noções a
respeito da imortalidade, e por que então te atreves a dificultar o caminho
para a imortalidade?
Espantosa demência!
Já o disse, Justiça humana, Jesus como todos os condenados, que têm tempo para
isso, podia tentar iluminar-te para salvar sua vida, somente que Jesus devia
considerar-te suficientemente iluminada, e não se defendeu. Justiça humana, pergunta
a teus mártires pelas diversas fases de sua agonia; todos te dirão que jamais
tinham amado tanto como nesse momento, aos que estavam para deixar. Todos
oferecerão minuciosos detalhes a respeito da calma fingida e dos alardeados
atos de coragem, que depõem em favor de sua valentia no mesmo momento em que o coração
geme despedaçado pelas ansiedades da dúvida, da vergonha, dos remorsos e a
naufragada esperança; quando a alma treme em frente da horrível visão que lhe proporcionam
os aparatosos acessórios do suplício, inventados pela maldade no meio de suas
orgias.
Grande Deus! Quanto
sangue derramado sobre esta terra! Tremo ao pensar no passado, no porvir, no
presente, em todos os países, em todas as religiões, em todas as origens, em
todas as castas, em todas as sucessões, em todas as ambições e até em todos os
caprichos manchados de sangue, e dirijo a todos os mártires minhas
reminiscências de mártir, e elevo, com força, minha voz a Deus, suplicando:
Piedade, misericórdia, Pai meu, para estes homens, que uma sociedade perversa
impeliu para o delito, por meio do ateísmo, e aos quais castiga imediatamente com
o delito. Digo a todos os justos: Como vós, sofri pela separação da carne, como
vós fatiguei meu espírito na contemplação das misérias morais, como vós duvidei
da utilidade de minha vida. E nesse momento solene em que a natureza luminosa
do espírito se turba sob o peso das aflições da vida corporal, nesse momento
precursor de minha liberdade, a elevada idéia de Deus pareceu fugir-me e meu
espírito encheu-se de dor e de pesaroso recordar.
Ai de mim! As
explosões de uma alegria grosseira, os insultos de um povo enganado, o abandono
da maior parte dos que me amavam, o desespero das mulheres que assistiam minha
morte, a opressão de uma intensa sufocação, todas as lívidas harmonias das
últimas torturas da alma e do corpo, lançaram em meu espírito uma profunda
tristeza que rompeu nesta queixosa prece:
“Pai meu, por que me abandonaste?
— Mártires, maior que a vossa, foi minha fé; mas se desmaiei ante as atrocidades
da ingratidão humana, se senti entorpecer-se minha vontade e titubear meu amor
fraterno, foi porque as dependências dos espíritos se convertem em escolhos para
os grandes caracteres, quando a força do alto não os ampara suficientemente
contra os embates que os assaltam de baixo. É que tinha ainda demasiadas
ligações para que pudesse concentrar-me somente em Deus.
Mártires, a grande voz de Deus vos diz por
minha boca: O espírito eleva-se
rapidamente no estudo das leis eternas, devido a uma morte imposta
violentamente, quando esta morte não é o termo de uma vida manchada pelo
homicídio.”
Irmãos meus, que um homem depravado levante sua mão sacrílega
contra uma vida humana, não significa de maneira alguma que uma quantidade de
homens tenha o direito de matar o assassino, porque o direito de morte só
pertence a Deus e não pode ser um meio para uso das criaturas. Qualquer que
seja a forma dada ao assassinato, o direito de assassinato não pode existir, porque
Deus não pretendeu alterar tacitamente e segundo as circunstâncias, as
palavras: Tu não matarás. Conclusão: A aplicação da pena de morte é um insulto
ao Criador.
Outra conclusão derivada do mesmo mandamento, tu não matarás,
é: A guerra e todos os atos que inundam a terra de sangue constituem negações
do princípio divino e ao mesmo tempo asquerosas saturnais do espírito em
delírio.
. . . . . . . . . . .
. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A este
respeito, irmãos meus, é necessário fazer ressaltar a lucidez da alma, a
penetração do espírito. Nunca deveis atribuir a causas sobrenaturais as faltas
que são o fruto de vossa incúria, as faltas cometidas por vosso livre arbítrio,
os acontecimentos derivados de uma ação da vontade, de um acordo ou confusão de
idéias, de um capricho furioso ou de um estado de sonolência.
Nosso destino, é
certo, apóia-se no passado, mas é também incontestável que ele melhora ou se
agrava devido às honras ou às vergonhas do espírito e que estas honras e estas
vergonhas preparam o porvir. Minha morte voluntária cerraria minha obra, porém
nada me obrigaria a uma morte voluntária. Eu era entretanto um Messias
destinado a sofrer pelos homens e também a morrer por eles, posto que na época
que eu vim à Terra como Messias, os homens conduziam à morte a seus Messias.
Porém, repito, eu podia fugir, e se minha hora estava próxima era porque, querendo
elevar-me pelo martírio, via que não era possível alongar a luta.
Judas atraiçoou-me,
não porque estivesse fatalmente predestinado para semelhante ato, dependente do
meu ato pessoal, senão porque, seu caráter ciumento o impelia à vingança. Se eu
tivesse evitado o suplício, Judas teria encontrado outro meio para demonstrar
seu ressentimento.
Suponhamos que os
homens são menos cruéis agora que quando eu vim à Terra como Messias, do que
deverão resultar algumas modificações nos sofrimentos preparatórios da morte e nos
da própria morte. Por que os Messias estão destinados a grandes sofrimentos nos
mundos inferiores? Porque os Messias trazem verdades e nos mundos dominados
pelas tradições da ignorância não podem ser aceitas as verdades senão à força
de trabalhos, de humilhações, de lutas heróicas e de longa desesperação, até à
morte, quaisquer que sejam as peripécias desta morte.
Regressei a Betânia
contente por encontrar ali os que eu havia deixado e evoquei as felizes
disposições de todos para festejarem meu regresso.
Chegamos à tarde e
não obstante a primorosa acolhida de meus discípulos, o abraço efusivo de minha
mãe, a emoção das outras mulheres, apercebi-me de um mal-estar geral.
“Mas Simão, exclamei, onde
está Simão?”
— Marta, inundada de
lágrimas, saiu de um aposento contíguo ao que ocupávamos. “Vem, disse ela,
pelo menos ele morrerá tranqüilo, visto que te chama.”
Maria, minha pobre
pequena Maria, atirou-se aos meus braços gritando: “Salva-o, Jesus,
salva-o!”
Arredei Marta e Maria
e entrei no quarto de Simão. Meu amigo era presa de uma febre ardente, porém
tranqüilizei imediatamente a todos tornando-me responsável pelo seu restabelecimento.
Coloquei-me a seu lado, permanecendo assim durante algumas horas² e fiz-me senhor
desse delírio, que não anunciava nenhuma lesão mortal. Qualquer outro,
conhecedor como eu das ciências médicas, teria obtido o mesmo resultado.
Seis dias depois
Simão encontrava-se convalescente e a eficácia de minha cura foi reconhecida
com o mesmo entusiasmo que sempre dava a meus atos mais singelos, uma
transcendência funesta para minha segurança presente e para minha dignidade de espírito
perante a posteridade.
Para celebrar o
restabelecimento de Simão, Marta teve a idéia de dar um banquete no qual deviam
honrar-me, a mim especialmente, e para dissimular a meus olhos o que havia de ofensivo
em tal ato para meus princípios, Marta recordou-me um costume ao qual tínhamos
deixado de submeter-nos à minha chegada, devido à tristeza que reinava na casa.
Este costume designava o visitante como a um amigo esperado desde muito tempo
antes; estavam prescritas demonstrações a que não podia subtrair-se o hóspede,
sob pena de desmerecer no conceito do amigo que lhe conferia a hospitalidade.
Éramos muitos neste
banquete. Tomaram parte nele vários parentes, alguns notáveis da povoação,
todos os meus discípulos da Galiléia, Marcos, José de Arimatéia, minha mãe,
Salomé, Verônica, muitas amigas e companheiras de Marta, formando enfim um
total de trinta e nove pessoas. Marta, que devia completar o número quarenta, preferiu,
segundo seus desejos ao terminar os preparativos, a honra de servir-me,
conjuntamente com Maria de Magdala, Joana, Débora e Fatmé.
Maria, irmã de Simão,
permanecia quase constantemente detrás dele, o qual estava sentado à minha
frente, no centro da mesa. Sua intenção bem decidida era a de contemplar meu semblante,
de surpreender meus mais insignificantes gestos, de saborear minhas palavras,
estudando todas as graduações de minhas impressões, de abandonar-se finalmente
a esse instinto indagador da alma, que despreza as formas exteriores para insinuar
o pensamento no pensamento e concentrar o desejo no ideal.
A conversação devia
naturalmente girar em torno do motivo da reunião. Meus conhecimentos
espirituais, minha dependência divina, exaltaram as imaginações e me vi
obrigado a explicar a origem de minha força moral, da maneira de lutar contra a
efervescência popular que pretendia descobrir o dom de milagre onde apenas
existia a harmonia das qualidades sensitivas da alma com fácil penetração do
espírito.
Para melhor convencer
a meus ouvintes, passei em revista minha vida de apóstolo e dei a cada um de
meus atos, tidos por sobrenaturais, o justo valor que lhes correspondia dentro
de minhas afirmações. Demonstrei-me como o Messias preparado para sua missão
com sólidos estudos sobre o poder dos elementos, sobre a propriedade das
plantas, a fraqueza do espírito humano e o império da vontade.
Fiz depender todas as minhas alianças espirituais de uma mesma fonte: a longa
vida do espírito, e todas minhas manifestações ostensivas do encadeamento
prático e sábio das causas e dos efeitos.
Deduzi da ciência
humana os caracteres ostensivos de meus meios curativos e da ciência divina, a
felicidade de minha alma, a qual arrojava seus reflexos sobre as almas
oprimidas e os espíritos enfermos. Estabeleci finalmente a grandeza de minha
fé, a imensidade de minhas esperanças com tão vivas imagens e com tais ímpetos
de entusiasmo, que Simão, apresentando-me uma taça cheia, suplicou-me que
molhasse nela meus lábios, a fim de misturar o sopro divino com o sopro mortal,
e de confundir o salvador com ele, o humilde ressuscitado, honra que ele pedia,
graça que receberia com ardente fé, com o amor inextinguível que lhe inspirava
o filho de Deus.
Nesse momento e
depois de haver contentado a Simão, ouvi como um soluço a meu lado. Voltei-me e
vi Maria. Ela se havia separado de seu irmão para acercar-se de quem havia sido
chamado salvador; sua gratidão, seu culto se traduziam em acentos entrecortados,
em espasmos da voz, e seu espírito sobreexcitado por minhas demonstrações,
vinha implorar o apoio de minha força contra a violência de suas ilusões. Tomei
a menina em meus braços, sua cabeça inclinou-se e seus cabelos soltos formaram
uma moldura de ébano a seu rosto inanimado. Todos os olhares ficaram fixos e os
peitos ansiosos, à espera do desenlace de tal crise, cujo termo se anunciou com
algumas lagrimas e um fraco rubor da pele. Maria despertou como de um sono, sem
compreender a emoção de que havia sido causa, e também com um sentimento de felicidade.
Expliquei a Simão a extremada sensibilidade da irmã e indiquei-lhes, com
insistência, que não deviam jamais contrariá-la bruscamente em suas
excentricidades, a essa alma tão exuberantemente dotada, a esse espírito tão
despoticamente governado pela alma.
Apenas tornada a si,
Maria desapareceu. Encontrava-me, por conseguinte, em boas condições para falar
de um acidente que me sugeriu numerosas observações sobre as naturezas
corporais dominadas por visões demasiado fortes da alma e por ambições demasiado
fortes do espírito. Em seguida deixei-me transportar, como sempre, por minha
volúvel fantasia, falando com frases sentenciosas e proféticas, em evocações de
meu espírito para o Ser Supremo.
Havíamos chegado ao
final do banquete e ninguém já comia, nem bebia, senão que todos tinham ficado
suspensos de minhas palavras.
Elevei-me
vagarosamente para o absoluto de meus ideais referentes às alianças dos mundos
e dos espíritos. Pouco a pouco senti-me como que separado dos que fraternizavam
comigo nesse banquete, vendo-me rodeado dos homens do porvir, e apresentou-se-me
através do suceder dos séculos minha emancipação desta terra. Depois, atraído
pelo sentimento da atualidade, falei de minha morte, rodeando-a de todas as
seduções da glória imortal.
Anunciei-lhes que
quase todos me abandonariam, prometi-lhes que os honraria em seus esforços ou
os consolaria em seus arrependimentos que os dirigiria para a luz com o auxílio
dos dons do espírito para com o espírito e que os elevaria com a persistência de
meu amor.
João, como sempre,
encontrava-se à minha esquerda e esforçava-se nesse momento por conhecer aos
que eu havia querido aludir ao falar de abandono. A este desejo, manifestado em
uma forma de pergunta, respondi que a presciência a respeito dos sucessos se
torna fácil por meio do esforço do espírito no estudo dos homens e das cousas.
“Muitos me abandonarão, acrescentei, porque
muitos são fracos e medrosos.
“Alguns me renegarão, outros me atraiçoarão,
talvez para iludir a responsabilidade ou
para satisfazer seu fastio.
“Os
homens não acreditam suficientemente na minha força de Messias
e a proximidade do perigo os separará de junto de mim.
“Porém, depois de minha morte, os homens de
quem falo compreenderão a covardia de
sua conduta e meu espírito se lhes aproximará novamente para continuar a obra
que fundei.”
Irmãos meus, eu não
assinalei de um modo mais preciso aos que me haviam de abandonar, renegar-me,
atraiçoar-me. A razão vô-la dou com minha resposta a esse discípulo tão audaz
em seu fanatismo, como exagerado em seus testemunhos de amor. A luz que brilha
da ciência espiritual é a guardiã das forças humanas para perseverar nas
atividades da alma e no heroísmo do espírito, mas não poderia determinar uma
violação da lei que quer que a matéria seja um obstáculo para a visão completa
da alma e do espírito. Eu gozava deliciosamente com as honras que me prodigalizavam
e, quando Marta derramou água perfumada sobre minhas mãos e que sua jovem irmã
me borrifou a cabeça e as roupas, demonstrei-me feliz ao contemplar a
felicidade que elas experimentavam. A tarde terminou no meio de uma alegria expansiva,
que nada veio turbar.
Irmãos meus, no
capítulo treze deste livro passaremos em revista as causas do ódio dos
sacerdotes e de minha condenação. Depois continuaremos a exposição dos fatos
que precederam a minha morte.
¹ Refere-se naturalmente à doutrina das
reencarnações, única que pode explicar o encadeamento dos fatos, dando
explicação da maior parte deles, que de outro modo resultariam como as páginas
espalhadas de um livro, que, separadamente, nada significam.
Assim, como se explicam os ódios ou simpatias inatas que se manifestam
entre duas pessoas que se vêem pela primeira vez? Por que em uma mesma família,
a despeito da lei
hereditária e apesar de
igualdade do meio e da educação, uns filhos saem perversos, outros virtuosíssimos;
uns intelectualmente deficientes, outros chegam a ser gênios, etc.? Só a doutrina
das reencarnações explica estas diferenças. Nota do Sr. Rebaudi.
² Este processo eu o tenho empregado e
emprego, com êxito, a miúdo. Todos podem igualmente empregá-lo, com a ajuda de
um benévolo e intenso desejo de beneficiar o enfermo. Isto não quer dizer que
sempre se obterá a cura nem que nossa ação possa ser comparável à do Mestre,
porém, bem sempre produz. Nota do Sr. Rebaudi
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