Desligado de minha submissão habitual,
pelo testemunho que tinha dado de minha liberdade de consciência, coloquei-me fora
da lei do respeito filial e tomei a direção espiritual de meus jovens irmãos de
maneira a conduzi-los à fé absoluta de que eu me sentia penetrado. Falava-lhes
das claridades divinas e meus cuidados não diminuíam apesar da pouca atenção
que prestavam às minhas palavras e do silêncio desdenhoso de meu pai.
Assim se passou um ano. Cansado de minha
pouca inteligência para tudo o que se relacionasse a trabalho manual, meu pai
consentiu afinal em mandar-me a Jerusalém. Ficou combinado que estudaria ali
durante alguns meses e que, regressando mais razoável a Nazareth, meu pai se
valeria deste motivo para deixar continuar minha educação nos anos seguintes.
Recebi esta notícia com entusiasmo. Minha
mãe chorou ao abraçar-me; ela se encontrava sob a dupla impressão de minha alegria
e de nossa primeira separação.
Pus-me a caminho com ela e bem depressa
encontrei colocação na casa de um carpinteiro que devia ensinar-me o ofício de
meu pai e conceder-me horas de saída para o estudo sob o patrocínio de José de
Arimatéia.
Comecei pela filosofia com idéias precisas
sobre a imortalidade da alma. Minhas noções de história eram fracas e custou-me
muito trabalho fixar meu espírito no círculo das ciências exatas. A astronomia
prendia minha atenção por causa das esplêndidas maravilhas que desenvolvia sob
meus olhos, porém a contemplação destas maravilhas me distanciava da curiosidade
das demonstrações, persuadido como estava da insuficiência da teoria.
Os romanos e os hebreus possuíam apenas as
noções de astronomia dos egípcios; é sabido que nos povos guerreiros e nos conquistados
faz pouco progresso a ciência.
Praticava a observância da lei mosaica com
escrupulosa exatidão e as
fantasias de minha imaginação se detinham no dogma sagrado. Porém pouco a pouco
fortes tendências para um espiritualismo mais elevado me fizeram desejar as
grandes manifestações da alma com a alma no vasto horizonte das alianças universais.
Devorado por um imenso desejo de descobrimentos que empolgava todas as minhas
faculdades e da penosa expectativa do desconhecido, que perturbava meus sonos e
entristecia meus pensamentos de solidão, roguei, supliquei a José de Arimatéia
que me explicasse os mistérios da Cabala, também chamada ciência dos espíritos.
Eu tinha ouvido falar desta ciência como
de um estorvo para a inteligência, e me haviam assegurado que todos os que abertamente
se ocupavam dela se faziam objeto de piedade senão de desprezo.
Porém sabia também que muitos homens de
boa posição social demonstravam desprezo pela ciência dos espíritos, unicamente
pelo respeito humano para com a opinião geral, opinião que se baseava sobre
escrúpulos religiosos mantidos acesos pelos sacerdotes.
José recebeu muito mal minha curiosidade.
A Cabala, segundo ele, servia tão-somente para produzir a perturbação, o desasossego,
a semente da revolta nos espíritos fracos.
E como poderia eu, tão jovem, distinguir o
bom grão do joio, se a maioria dos homens se deixava desviar do reto caminho por
uma falsa apreciação desta ciência e por funestos conselhos dados com
leviandade e com maus propósitos?
Voltei
repetidas vezes à carga até que, vencido por minha insistência, ou iluminado
talvez por uma repentina visão, José consentiu em iniciar-me na ciência dos
Espíritos.
“A Cabala, me disse José, vem desde o tempo de Moisés,¹ e depois de Moisés, que mantinha
relações com os espíritos, porém que dava aspecto teatral a estas relações, a
Cabala serviu sempre aos homens de dotes eminentes para colocar, no seio da
Humanidade, as preciosas demonstrações recolhidas na afinidade de suas almas com
as almas errantes no Céu de Deus”.
“A Cabala vem desde o tempo de Moisés, para
nós que nada vemos mais além de Moisés,
mas a Cabala deve ser antiga como o mundo. Ela é uma expressão da personalidade
de Deus que confere sonoridades ao espaço e aproximações ao infinito.
“Ela constitui uma lei tão grande e honrosa
para o espírito, que este a define como
uma aberração, quando suas aptidões não o levam a estudá-la, ou que ele recebe toda
classe de abalos e de aflições se a estuda sem compreender sua utilidade e seu
fim.
“Os homens que falam a Deus sem ter
consciência da majestade de Deus, não
obtêm da prece mais que um fruto seco, que a imaginação lhes apresenta como um
fruto saboroso.
“Porém o amargor faz-se depressa sentir e
assim se explica a secura da alma, o isolamento
do espírito, a pobreza da devoção.
“Na ciência das comunicações espirituais, o espírito que se desvia do princípio
fundamental desta ciência, não obtém nada de verdadeiro e útil. Pode dirigir-se
a elevadas personalidades, porém lhe respondem inteligências medíocres e
caminha como um cego, retardando-se cada vez mais nas escabrosidades do caminho.
“O princípio fundamental da ciência
cabalística reside integralmente na
abnegação do espírito e na liberdade de seu pensamento com relação a todas as noções
religiosas adquiridas anteriormente em seu estado de dependência humana.”
Prometi a José muita prudência e respeito
no estudo desta religião, da qual minha alma e meu espírito estavam enamorados,
com o fanatismo das grandes aspirações.
José escutava-me com o pressentimento de
minha predestinação às honras de Deus (assim, confessou-me depois), tão grande
foi a veemência de minhas palavras e tal foi a unção de minha gratidão. Dois dias depois desta
conversa, José levou-me a uma reunião composta de homens quase todos chegados à
idade madura. Eram cerca de uns trinta e não demonstraram surpresa à nossa
chegada.² Colocamo-nos todos perto do orador.
As sessões cabalísticas eram
abertas com um discurso. Nele se fazia, como
exórdio, a enumeração dos motivos que impunham a vigilância para que não fossem
admitidos à assembléia senão os neófitos por quem pudessem responder os membros
mais velhos. Portanto um membro recentemente admitido não tinha o direito de
apresentar um noviço. Se necessitavam muitos anos de filiação para chegar ao
patrocínio, mas este patrocínio não levantava nunca oposições.
Os jovens menores de vinte e cinco anos
não eram admitidos, acontecendo o mesmo às mulheres; porém as exceções, muitas
vezes repetidas, tornavam ilusória esta disposição regulamentar.
Eu estava incluído no número destas
exceções.
Muitos homens chegaram ainda depois de
nós. Em seguida fez-se silêncio e fecharam-se as portas.
O orador expôs circunstanciadamente os
caracteres especiais destas reuniões entre uma população que devia temer-se por
sua ignorância e enganá-la para trabalhar por sua liberdade.
Fez em seguida ressaltar os princípios de
conservação, como já o disse, e rendeu homenagem à minha entrada no santuário
fraternal, dirigindo-me algumas palavras de carinhosas recomendações.
Tudo isto, menos o que se referia à minha
pessoa, se repetia em todas as sessões e tomava pouco tempo.
Tivemos em seguida uma bela argumentação a
respeito da luz espiritual e dos meios para transformá-la em mensageira ativa dos
desejos do Ser Supremo.
Ser Supremo! — Estas palavras fizeram
inclinar todas as frontes e, quando deixou de ouvir-se a voz eloqüente, um estremecimento
magnético deu-nos a conhecer uma adoração inefável. Algumas perguntas deram
lugar a respostas sábias e conscienciosas. Estudaram-se páginas magníficas, se
explicaram e dissiparam contradições aparentes e dúvidas passageiras. Algumas demonstrações
profundas depositaram sementes preciosas no espírito dos noviços, e a
intensidade do amor fraternal de todos os corações manifestou-se com uma
tocante invocação ao Espírito Divino.
Esta sessão deixou minha alma ainda mais
desejosa das alegrias de Deus e meu espírito em um profundo recolhimento para
merecer estas alegrias.
Não pronunciamos uma só palavra até meu
domicílio.
“Até amanhã”, disse-me José,
separando-se de mim.
No dia seguinte José dirigiu-me meus
primeiros ensaios³, e demonstrou-se satisfeito dos seus resultados. Meu
regresso a Nazareth deu uma trégua às preocupações de meu espírito.
No intervalo que vai dos meus quinze anos
de idade, até o falecimento de meu pai, permaneci a maior parte de meu tempo em
Jerusalém.
Distinguido por sua probidade e por haver
mantido todos seus filhos no reto
caminho da honra e da simplicidade, José morreu rodeado da estima geral e do
afeto dos seus. Eu tinha, como disse ao começar este relato, vinte e três anos
completos e volto a tomar o fio dos detalhes interrompidos pelo olhar dirigido sobre
os meus primeiros anos.
José de Arimatéia tomou-me como filho seu
quando, longe de minha família, fui pedir-lhe abrigo e proteção. Ajudou-me a
obter o perdão de minha mãe. Minha mãe não somente me perdoou como também
deu-me permissão para seguir minhas inclinações e uma vida independente.
À medida que a luz do alto penetrava com
mais intensidade em meu espírito, ele se via invadido cada vez mais por uma
séria aversão pelas instituições sociais dominantes. Reconhecia com segurança a
depravação humana, porém considerava também a desgraçada condição dos homens e
dirigia meu pensamento para o futuro que sonhava, confundindo-o na ternura do
Pai, deles e meu. Minha presença em uma assembléia de doutores foi acolhida
favoravelmente e me apresentei desde então em público como orador sagrado.
Garantido por meus antigos companheiros de conspiração, pude dedicar-me ao
estudo dos homens que
governavam e dos acontecimentos.
Em minha casa de Jerusalém pensei em meus
trabalhos futuros e procurei
adquirir o prestígio das classes pobres sublevando-me contra os ricos, os
poderosos e as leis arbitrárias. Porém não era este um trabalho partidarista,
uma participação dos propósitos de rebelião de um povo, muito embora fizesse a
Deus o oferecimento de minha vida para salvar o gênero humano. O arrebatamento
de meu coração fazia-me esquecer as dificuldades e, freqüentemente, com o rosto
inundado de lágrimas, as mãos estendidas para um objeto invisível, fui surpreendido
em uma posição que parecia crítica para a minha razão. Meus amigos me humilhavam
nessas ocasiões com tais demonstrações e sarcasmos que eu me retirava das
vistas humanas para pedir perdão a Deus de meus transportes, acusando-me de
orgulhosos desejos.
As populações da Judéia representavam para
mim o mundo, o que era motivo de diversão para os confidentes de meus delírios
e não os assombrava menos a reserva que eu me impunha diante de suas zombarias.
A posteridade não se ocupou da vida que levei em Jerusalém; ela ignorou sempre
as fases da minha existência e só se comoveu com a minha pregação e com a minha
morte.
Porém, essas minhas pregações, devia
compreender-se que tinham sido meditadas, como também havia sido prevista minha
morte como coroamento de meus atos muito antes que se me houvera tachado de
revolucionário e acusando-me com inaudita veemência como vaidoso pelos mesmos
que me rodeavam. Como podia haver eu aceitado minha missão e meu sacrifício se
não tivesse penetrado no conhecimento íntimo das coisas?
Repito-o, pois: a luz de Deus penetrava em
mim, removia as dificuldades que se levantavam no mundo humano e não me permitia
ver senão o fim, que era o de dirigir a Terra por um caminho de prosperidade e
de amor. Elevando minha personalidade, porém atribuindo a Deus esta elevação,
desejando a popularidade, porém resolvido a empregá-la exclusivamente no olhar
cheio da luz que lhe dava o estudo das leis e da época, o perigo de morte que
tinha de desafiar e os caminhos espinhosos que teria que percorrer, eu havia
chegado à convicção profunda da eficácia de meus meios.
Democrático por inclinação mais do que
pelos raciocínios políticos, defensor do pobre com a idéia fixa de encaminhá-lo
para a transfigurada imagem do porvir e desdenhando os bens temporais porque me
pareciam destruir as faculdades espirituais, punha em prática até com as
pessoas de minha intimidade, a observância rigorosa dos preceitos que tinha a
intenção de estabelecer como princípio de uma moral poderosa e absoluta.
Minava os alicerces da muralha da carne,
jurando perante Deus respeitar o espírito a expensas do corpo, sacrificar as tendências
da matéria em face das delicadezas da alma, permanecer senhor de mim mesmo em
meio da violência das paixões carnais e elevar-me para as altas regiões, puro
de todo o amor humano sensual; fugir da companhia de gente feliz no ócio e aproximar-me
às corrupções e infelicidades para convertê-las em arrependimentos e
esperanças; apagar em mim, todo o sentimento de amor próprio e iluminar os
homens com o amor de Deus; ajuntar à moral pregada por espíritos eleitos a
moral fraterna pregada por um obscuro filho de operários; irmanar a prática com
a teoria, levando uma vida de pobreza e privações; morrer, enfim, livre dos
laços humanos e coroado pelo amor divino. . . . . . . . . . . . . . . . . .
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“Com tua poderosa mão, oh Deus meu, dirigiste
meus atos e minha vontade, posto que teu
servo não era mais que um instrumento e a pureza honrava o espírito do Messias,
antes que este espírito se encontrasse unido com a natureza humana na
personalidade de Jesus.”4
Irmãos meus, o Messias tinha vivido como
homem sobre a Terra e o homem Novo tinha cedido seu lugar ao homem compenetrado
das grandezas celestes, quando o espírito se viu honrado pelos olhares de Deus
para ser mandado como enviado e mediador.
O Messias tinha já vivido sobre a Terra
porque os Messias jamais vão como mediadores em um mundo que não tenham habitado
anteriormente.
A grandeza da nova luz, da lei que eu
trouxe por inspiração divina, se encerra toda ela em nossos sacrifícios e em nosso
amor recíproco que nos elevam fraternalmente para a comunhão universal e para a
paz do Senhor nosso Pai. Meu sacrifício foi de amor em sua mais veemente
expressão, amor para os homens inspirado por Deus e o amor de Deus que ampara o
espírito em suas fraquezas humanas.
Irmãos meus: a tristeza de Jesus no horto
das oliveiras e a agonia de Jesus sobre a cruz estiveram misturadas de força e
de fraqueza. Mas o amor do Pai inclinou-se sobre a tristeza de Jesus e ele
levantou-se dizendo a seus apóstolos: “Minha hora é chegada”.
O suor de sangue e as grandes torturas
haviam diminuído o amor paterno; mas a ternura do Pai reanimou o moribundo coração,
e Jesus pronunciou estas palavras:
“Perdoa-lhes, Pai meu, eles não sabem
o que fazem.
Faça-se a tua vontade; em tuas mãos
entrego minha
alma”.
Repito-vos, irmãos meus, a pureza do
espírito se encontrava na natureza do Messias, antes que ele se encontrasse entre
vós como Messias. Repito-vos, também, que os olhares de Deus lançam a semente
em um tempo para que ela dê frutos em outro tempo e os Messias não são mais do
que instrumentos da divina misericórdia.
A palavra de Deus é eterna, ela diz:
“Todos os homens chegarão a ser sábios e
fortes pelo amor do seu Pai”.
A palavra de Deus é eterna, ela diz:
“Amai-vos
uns aos outros e amai-vos sobre todas as coisas”.
Ela
diz:
“O espírito adiantado se envergonha,
na matéria, ao tomar parte nas discussões
infantis”.
“Compenetrado da grandeza do porvir, honra
esse porvir e vence os obstáculos que se
opõem à sua liberdade”.
“Todas as humanidades são irmãs: todos os membros destas humanidades são irmãos e a
terra não encerra senão cadáveres”.
“A verdadeira pátria do espírito se
encontra esplendidamente decorada pelas
belezas divinas e pelos claros horizontes do infinito”.
Irmãos meus: Deus é vosso Pai como é o
meu; porém, na cidade florida onde se encontram e recebem os Messias, o título
de filho de Deus nos pertence de direito. Chamai-me, pois, sempre filho de
Deus, e tende-me por Messias enviado à Terra para a felicidade de seus irmãos e
glória de seu Pai. Iluminai-vos com a luz que faço brilhar diante de vossos
olhos. Consolai-vos uns aos outros, perdoai a vossos inimigos e orai com um
coração novo, livre de toda a mancha, de toda a vergonha por este batismo da palavra
de Deus, que comunico a vosso espírito. O Messias torna a ser mandado, em vosso
auxílio, não o desconheçais e trabalhai para participar de sua glória. Escutai
a palavra de Deus e ponde-a em prática. A divina misericórdia vos chama,
descobri a verdade com coragem e marchai para a conquista da liberdade de mãos dadas com a ciência.
Repeli a perigosa apatia da alma para
aspirar as deliciosas harmonias do pensamento divino e bebei do livro que vos
dito, os princípios de uma vida nova e pura. Fazei o bem ainda que aos vossos
inimigos e avançai, com passo firme, no caminho da virtude e da verdadeira
honra. A virtude combate as más inclinações e a honra verdadeira sacrifica
todas as prerrogativas do eu pela tranqüilidade e felicidade da alma irmã.
Irmãos meus, vos abençôo ao terminar este
segundo capítulo.
¹ Deste fato se
encontram provas em diversas passagens da Bíblia. Quanto a Jesus, a Cabala pôde
bem servir-Lhe como motivo para despertar Nele as aptidões psíquicas, de que sem
dúvida vinha excepcionalmente dotado. Os primeiros cristãos, é incontestável
que praticavam as evocações em suas reuniões diárias, o que devia ser fruto dos
ensinamentos dos apóstolos. — Nota do Sr. Rebaudi.
² Apercebi-me de que
nos esperavam.
³ Vê-se claramente
que se trata aqui de exercícios medianímicos, porque, se bem estivesse ele em
comunicação intuitiva com o plano extracorporal, é incontestável que a materialidade
do fenômeno, ou seja, a forma das comunicações, ele aprendia na Cabala. —
Nota do Sr. Rebaudi.
4 Parece que o que se encontra entre aspas
deveria mais bem-estar escrito com tipo bastardinho. — Nota do Sr. Rebaudi.
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