Queridos irmãos:
Nosso primeiro
impulso ante a morte de Jesus foi de terror e instintivamente parecia querermos
fugir dentre a multidão (já bastante reduzida pela retirada de muitos) temendo
nós as brutalidades de que tínhamos visto fazer gala a esse populacho inculto e
feroz. Nossas almas passavam por uma grande e rude prova e, quanto a mim,
achava-me completamente aniquilado.
Realmente, não
poderia dizer se era medo por nossas pessoas o que nos detinha, pois que eu
mesmo, que levava a vergonha e a dor da primeira cobardia manifestada em nosso grupo,
eu mesmo sentia-me abandonado de minha própria consciência, sob o peso do
imenso infortúnio que o desaparecimento do Mestre havia feito cair sobre nós e
nada me parecia já ter que perder, como se de minha própria pessoa me houvesse
esquecido.
Em verdade, José de
Arimatéia, Alfeu, Marcos e Tomé, na noite terrível que precedeu à crucificação,
tinham dado já provas de valor muito superior à minha covarde atitude de
negador do Mestre. Em compensação, Tiago e João, que também haviam seguido ao
Senhor até à casa do grande Sacerdote, tinham dado eles igualmente provas de
fraqueza afastando-se quando lhes pareceu correrem algum perigo, e maior
cobardia ainda haviam manifestado os que fugiram desde o primeiro momento.
Felizmente, a
perplexidade nossa foi momentânea desta vez, resultando assim honrosamente
reabilitada a nossa pequena igreja de sua cobardia anterior, pois que logo
depois viu-se rodeada a cruz pelas santas mulheres que haviam estado
acompanhando a Maria, a mãe, a poucos passos do patíbulo, por José de
Arimatéia, por Tiago e João, filhos de Zebedeu, Tiago o irmão de Maria, Marcos,
Alfeu, e eu, que fomos os primeiros a nos acercarmos dos queridos despojos.
Descido imediatamente
o corpo do madeiro e confiado por alguns momentos ao cuidado unicamente das mulheres,
a fim de que o preparassem para seu enterro, segundo o costume de então,
depositou-se no sepulcro de José de Arimatéia.
A noite nos
surpreendeu na lúgubre tarefa, avisando-se as mulheres para na manhã de domingo
se efetuar o enterramento como convinha, rodeando o corpo dos devidos cuidados
e cumprindo todos os piedosos detalhes próprios do caso.
No primeiro momento
todos manifestaram temores de que pudesse ser profanado o cadáver pelo rancor
dos terríveis inimigos do Mestre, porém tranqüilizaram-se os ânimos ao
observar-se o completo abandono do lugar pelo populacho, cansado de vociferar e
de agitar-se como um energúmeno em volta de sua vítima, silenciosa e
inofensiva.
Uma cousa, no
entanto, passara já havia pouco por minha mente. Era uma idéia imperiosa que me
apontava como uma necessidade imprescindível: a de ocultar o cadáver de um modo
seguro e com o mais absoluto sigilo, de maneira que nem mesmo os discípulos o
soubessem, enquanto não se aplacassem os ódios que a tais extremos haviam
chegado. O segredo não teria sido possível guardá-lo entre vários porque estes
mesmos algo teriam deixado transparecer ou teriam vagueado pelos arredores do sepulcro,
chamando a atenção para ele, ou se lhe teriam acercado furtivamente com fins de
devoção, ou chegariam a abri-lo mais tarde para certificarem-se de seu bom
estado, ou com seus murmúrios teriam despertado a curiosidade do povo a
respeito do lugar do enterro. Enfim, para que a segurança fosse completa, absoluto
devia ser o segredo e para isso necessário era que permanecesse encerrado em
minha consciência somente. Por outra parte, poderia eu confiar em que o
companheiro a quem comunicasse minha idéia estaria conforme com o segredo absoluto
para com os demais? Aprovaria essa ação tão pessoal que vinha negar o igual
direito dos outros discípulos a tudo o que ao Mestre se referia? Muito
provavelmente não o aprovaria ou pelo menos discutiria a conveniência desse
proceder não consultado entre o grupo dos discípulos. Não, não, um só caminho
havia de verdadeira segurança: proceder só, sem nenhum auxílio. Assim,
inclinava-me a esta resolução, embora não deixassem de assaltar-me temores de
impotência ao pensar nas dificuldades que a obra apresentaria para um só homem.
Apesar de tudo, voltei no sábado, noite alta, com o propósito de intentar meu projeto,
pensando ocultar o cadáver em outro sepulcro próximo, já ocupado. Eu nutria a
ilusão de que poderia escondê-lo debaixo de outro corpo com o lençol com que
ele estava envolvido. Com estes pensamentos ia caminhando em direção ao
sepulcro quando me pareceu ouvir ruídos surdos de passos distantes e o rolar,
pela ladeira, de alguma pedrinha, como se tivesse sido deslocada pelo choque do
pé de outro caminhante noturno. Detive-me, retendo a respiração, e depressa me
apercebi de que era detrás de mim de onde os passos procediam, parecendo-me por
isso mais distantes do que em realidade eram, pois quase em seguida descobri,
muito próximo já, uma silhueta que por suas aparências pareceu-me corresponder
à de José de Arimatéia, o qual não pouca surpresa e temor manifestou ao ouvir-se
interpelado por seu nome, a essa hora naquele lugar. Nosso encontro parecia
providencial e o que separadamente nenhum dos dois talvez tivesse podido levar
a cabo, juntos o efetuamos, se não com facilidade, pelo menos com melhor
resultado.
José de Arimatéia
também tinha pensado em procurar os meios de precaver toda a possível tentativa
de profanação dos queridos despojos. Porém, ele igualmente tinha desconfiado do
pouco tino dos membros da comunidade, cuja disciplina, também, não era tal que
suprisse, pelo respeito à ordem, a falta de perspicácia dos demais, de maneira
que, por algum descuido em suas conversações, pensava ele, ou por alguns atos
piedosos praticados pelas mulheres, ou atraídos inadvertidamente, pelos mesmos
afetos para o Mestre, às proximidades do lugar que fosse escolhido para seu
enterramento, facilmente dariam motivo a que fosse descoberto pelos implacáveis
inimigos das novas doutrinas, os quais não deixariam de enfurecer-se contra os
despojos de seu fundador, com o propósito também de destruir dessa maneira todo
o prestígio religioso de que tivesse podido rodeá-los. Isto mesmo não tinha
cessado de trabalhar meu espírito, quer dizer, o grande dano que resultaria
para a autoridade de Jesus se seus despojos chegassem a ser o alvo das faltas
de consideração e de respeito de todo o gênero, nesses tempos e no meio de
povos como o da Judéia, que davam um valor muito grande a tudo o que se relacionava
com seus mortos, de maneira que somente o deixar insepulto um cadáver era já
considerado como uma das maiores desgraças e verdadeiro ato de impiedade. O dar
sepultura aos mortos, quaisquer que eles fossem, ainda mesmo dos inimigos, considerava-se
em compensação como uma obra piedosa. Assim, portanto, aos restos de uma pessoa
qualquer se tributavam as maiores considerações, sempre as que a mesma pessoa
tivesse merecido e se, pelo contrário, os restos de Jesus, em vez de receberem
honras, fossem torpemente profanados, dir-se-ia que nenhuma proteção haviam
merecido de Deus nem dos homens.
Teria resultado
desmantelar-se assim toda a base para uma reabilitação próxima do justiçado. Esta
argumentação, apesar de demasiado humana, não carecia de base, pois que
infinitos são os meios que Deus tem a seu alcance para a realização de tudo o
que se propõe, vendo-se às vezes surgir os mais grandiosos acontecimentos das
causas mais insignificantes em aparência. Isto foi justamente o que aconteceu com
as disposições que de comum acordo tomamos José de Arimatéia e eu, com respeito
ao corpo de Jesus.
Efetivamente,
passados os efeitos da surpresa e depois de algumas hesitações e breve
indecisão, acabamos por explicar-nos mutuamente nossa recíproca situação e
combinamos agir de comum acordo. O sepulcro que eu lhe indicava pareceu-lhe situado
muito próximo, preferindo também outro de mais pobre aparência. Seria, além
disso, uma loucura colocar-se um corpo em sepultura alheia, porque ele seria
indefectivelmente descoberto no dia em que se fosse efetuar um novo enterro.
Arimatéia conhecia um sepulcro algo distante e de pobre aspecto, que havia sido
abandonado por seus proprietários, os quais tinham desaparecido desde os dias
da conquista de Jerusalém, talvez mortos, ou prisioneiros foram para Roma
seguidos por suas mulheres e filhos, onde tinham resolvido estabelecer-se
definitivamente. Tratava-se, de todos os modos, de gente pouco conhecida e sem
vínculos e da qual, afinal, ninguém se havia ocupado. Havia outros sepulcros, segundo
parecia, igualmente abandonados, porém não tinha eu a respeito deles a mesma
certeza quanto ao desaparecimento de seus proprietários. No indicado, pois, por
José de Arimatéia, resolvemos depositar o cadáver, pondo mãos à obra imediatamente.
Chegados ao sepulcro
de Arimatéia, levantamos com muita dificuldade a grande pedra que o fechava,
fazendo alavanca de nossos bastões. Tiramos ao cadáver o lençol sujo e ensangüentado
com que estava envolvido, assim como outro pedaço de pano que rodeava sua
cabeça e que também estava todo ensangüentado. Envolvemo-lo em substituição,
completamente, com um lençol grande que José de Arimatéia tinha levado. Em seguida,
muito agitados, pois havia-nos parecido ouvir passos de pessoas... quantas
vezes nos pareceu ouvi-los nessa noite!...carregamos com o corpo e abandonamos
o sepulcro, esquecendo-nos de fechá-lo novamente. Grande foi o trabalho que nos
custou a condução de nossa preciosa carga por entre a escassa claridade da noite
e por caminhos íngremes e tortuosos. Chegamos finalmente e conseguimos levar a
feliz termo a empresa, ficando satisfeitos com isso, na certeza de que não
poderia ser encontrado o cadáver.
Longa tinha sido a
tarefa, pois, ao terminá-la, nos apercebemos que muito próximo estava já o dia.
Resolvemos retirar-nos por diferentes caminhos para evitar, por excesso de
prudência, que se nos pudesse ver juntos a essas horas e nesses lugares porém
antes de nos separarmos juramos solenemente que jamais falaríamos do que
acabávamos de fazer nem ainda entre nós mesmos; guardaríamos, pois, o mais
profundo silêncio a respeito, quaisquer que fossem as circunstâncias que
pudessem apresentar-se.
Completamente
satisfeitos assim, da para sempre absoluta segurança dos preciosos despojos,
nos encaminhamos silenciosos e apressadamente, José de Arimatéia para sua casa,
pois era de Jerusalém, e eu para a que me hospedava nas cercanias de Getsemani.
Porém imediatamente, desaparecida pouco a pouco a enorme confusão que se
aninhava em meu cérebro e a profunda agitação que dominava meu espírito,
assaltou-me um horrível pensamento que até aquele momento, devido sem dúvida ao
meu estado de ânimo, não me havia ocorrido. As mulheres iam voltar ao sepulcro
em cumprimento do piedoso propósito já manifestado... Qual não seria sua dor e
seu espanto ao verificar o desaparecimento do cadáver... Toda a pequena igreja
se veria presa da maior desolação, certamente.... e com que direito nos havíamos
apropriado do que pertencia a todos? Uma boa intenção podia acaso justificar
semelhante esbulho feito aos mais legítimos sentimentos de toda a comunidade?
Não bastavam para acalmar minha consciência as circunstâncias excepcionais e o
fato de certa autoridade de que o mestre me havia revestido em diversas ocasiões
perante os demais membros de nosso pequeno cenáculo, assim como certa
consideração e deferência com que José de Arimatéia tinha sido sempre
distinguido por Jesus¹ e que vinha constituir
certa autoridade no meio da pequena igreja, além de tudo, que não se tratava de
nada permanente mas sim de um meio provisório para conjurar um mal de momento.
Cheguei a meu
alojamento quando começavam já os primeiros albores do dia, adormecendo logo que
me deitei, vencido por extraordinário cansaço de dois dias de intensas agitações.
Apenas teria desfrutado um curto sono quando um alvoroço desusado me
despertou bruscamente, no mesmo momento em que João e as duas Marias se
precipitavam para mim gritando: “Jesus ressuscitou como estava anunciado”.
“Eis que, acrescentou João, as mulheres acabam de encontrar o sepulcro aberto
e vazio, o lençol que envolvia seu corpo e a toalha que envolvia a cabeça
ficaram ali deixados de lado.”
Grande foi o
aturdimento que tão inesperada notícia me produziu. Não sabia o que se passava
em mim, sendo que minha turbação foi interpretada como um efeito natural de
surpresa por tão extraordinário acontecimento. Sem mais, tomou-me João pela mão
e corremos, seguindo as mulheres que se nos adiantaram e seguidos pelos outros
discípulos ali também hospedados.
Durante o caminho
procurei orar mentalmente, pedindo principalmente ajuda ao Senhor para sair de
tão difícil conjuntura e a verdade é que me senti algo mais tranqüilo e
fortalecido.
O entusiasmo das
mulheres e de João não parecia comunicar-se inteiramente aos demais, que
pareciam mais perplexos e atemorizados que dominados pela fé e por esse estado de
elevado misticismo que deveria arrebatá-los em presença de um fato de tão extraordinária
transcendência. Alguns dirigiam seus olhares para a
entrada do sepulcro e para as proximidades, como a procurarem sinais de uma
intervenção estranha, e outros, abertamente manifestaram o temor de que
tivessem roubado o cadáver, senão para profaná-lo, para impedir pelo menos que
se lhe tributassem honras, convertendo-o em objeto de culto.
Eu, sem manifestar
nada, ajoelhei-me e orei, sendo seguido meu exemplo por todos os presentes. Em
seguida retirei-me em silêncio e minha atitude triste e circunspecta foi
respeitada.
João, por sua parte,
insistiu uma vez mais em que Jesus tinha ressuscitado segundo sua própria
promessa, porém jamais haviam saído dos lábios do Messias palavras que pudessem
aproximar-se a semelhante significado.
João, sim, tinha assegurado
entre outras cousas filhas de seu caráter novelesco e exagerado que o Messias
ressuscitaria ao terceiro dia de sua morte, porém Jesus nada nos disse que se pudesse
parecer com isto.
O que muitas vezes
nos tinha assegurado era que sua presença, depois de morto, se demonstraria
constantemente no meio de nós com o fim de guiar-nos com sua influência. A mim,
principalmente, me havia feito prometer, repetidamente, que jamais deixaria de
pôr em prática as suas intuições.
Com isto demonstrava
o perfeito conhecimento de suas condições futuras como espírito, o que é prova
da excepcional elevação desse Ser tão superior, como jamais houve outro sobre a
Terra.
Tinha-se valido
também da palavra ressurreição, porém, mais ou menos, desta forma: “Muito
breve, depois de minha morte, ressuscitarei no meio de vós para dar-vos prova
evidente de minha presença a vosso lado, porém tende como certo, e não olvideis
que, embora invisível, sempre estarei presente a vosso chamado e que toda a vez
que me recordeis no meio de vós estarei. Ainda que vossos olhos não me vejam,
nem me apalpem vossas mãos, me pressentirão vossos corações e me ouvirão vossas
consciências porque a carne só pela carne é vista, o espírito pelo espírito”.
Nós tomávamos a
palavra ressuscitarei por algo assim como: “Atuarei entre vós com todos os
característicos da vida material”. Tampouco podíamos dar-lhe o significado
que se pretende, desde o momento que os ensinamentos do Messias se referiam
constantemente à influência que os espíritos livres exercem sempre sobre os
encarnados e que no estado de espírito é quando o ser tem maior domínio sobre
todas as suas faculdades.
A doutrina das vidas
sucessivas muitas vezes foi dada a conhecer vagamente perante o público,
expandindo-se em explicações muito positivas em algumas outras ocasiões; mas pouco
pôde ser compreendido por gente tão materializada, que nem mesmo a idéia da
alma podia aceitar mais ou menos, pois que sua religião não deixava pressentir
separada a alma do corpo. O prêmio e o castigo haviam de ser experimentados
pela pessoa, em sua integridade de alma e de corpo. Assim se compreendia geralmente
e os ensinamentos dos doutores da lei não se afastavam aparentemente de tal
critério, se bem que corriam entre o povo algumas afirmações que encerravam implicitamente
a idéia da alma com um corpo novo, quer dizer, a doutrina dos renascimentos.
Porém, disse Jesus,
que ele não tinha vindo para renovar a lei mas sim para confirmá-la,
submetendo-se a práticas como a da circuncisão e outras não menos características
da lei mosaica. Não podia portanto inculcar, tão abertamente, doutrinas que chocassem,
no íntimo da limitada compreensão dos hebreus, com as doutrinas já
estabelecidas. Por isso, pouco se detinha o Messias na explicação fundamental
da verdadeira doutrina, limitando-se a inculcar sua celebrada concepção de “Ama
a Deus sobre todas as causas e ao próximo como a ti mesmo. Esta é a lei e os
profetas”.
Oh!... Quanto se
elevava, ao desenvolver este tema favorito de suas dissertações! Era então
quando, remontando-se demasiado nas asas de seu delicado sentimento,
manifestava-se entre os resplendores de sua essência superior, coando-se entre
suas entusiásticas palavras o reflexo encantador de suas visões celestiais.
Tornava-se então incompreensível para seus ouvintes incapazes de se elevarem às
alturas da intuição e da verdade divinas, que embora a nosso derredor palpitem,
somente as almas superiores tais palpitações percebem. A vida universal
revelava-se então perante nós, sendo a vida humana somente
um seu detalhe e o espírito humano, ignorante e abjeto, chegaria até à glória
de seu Pai, entre os resplendores que rodeiam seus divinos mensageiros. Porém, nesses
casos, a perplexidade manifestada pelos que o rodeavam e os olhares atônitos de
todos o chamavam à realidade e bruscamente mudava o quadro de sua exposição
como querendo manifestar que a teimosia de todos, no vício, tornava-os
incapazes dessas concepções e unicamente dignos do fogo eterno do inferno.
Deste modo, desde as
alturas do infinito concluía por descer às concepções religiosas vulgares;
porém, fazia-o com tal habilidade que desaparecia a confusão que tinha
resultado do seu primeiro impulso francamente exteriorizado, para ficar, com
lógico encadeamento explicado, o conjunto dessas noções simples do bem e do
mal, do prêmio e do castigo, que encontram natural aceitação nos espíritos
menos desenvolvidos.
A seguir acrescentava
muitas vezes alguma engenhosa parábola que ilustrasse o que desejava inculcar e
terminava, a maior parte das vezes, com afirmações categóricas, repetidas com
insistência sob diversas formas e sempre com a maior energia, o que muito impressionava
o seu auditório. Aos seus discípulos, entretanto, tinha por costume
explicar-lhes detalhadamente as grandes verdades das vidas sucessivas, da
pluralidade de mundos habitados, das verdadeiras formas da justiça divina, do
progresso como lei essencial do Universo intelectual, sendo que seus continuados
esforços resultavam quase de todo estéreis, pois nós mesmos dispúnhamos de
muito curta inteligência e cheios tínhamos nossos espíritos das preocupações
mais vulgares do judaísmo popular. Existiam precisamente no meio dessas preocupações,
certos relatos de profetas que tinham sido transportados com seu corpo para o
céu e cujo regresso de alguns era esperado. Assim se disse de Moisés, que tinha
desaparecido no meio de nuvens, e de Elias, que havia sido arrebatado num carro
de fogo, assim como realmente os hebreus pareciam não conceber a vida sem o
corpo, o que, apesar de tudo, ainda hoje mesmo, muitos homens, não de todo
incultos, não entendem.
Não se trata,
naturalmente, da vida orgânica derivada de complicados fenômenos físicos,
vegetativos, mas sim da existência superior do espírito como tal espírito, que
atua em outro plano, com as faculdades e propriedades que lhe são inerentes e que
nada têm que ver com o mundo da matéria, senão enquanto esta possa ter alguma
influência sobre a envoltura grosseira dos espíritos muito inferiores.
O certo é que, pouco
a pouco, à medida que os apóstolos foram convencendo-se que não existia nenhum
interesse pelo corpo de Jesus por parte de seus inimigos, perplexos eles
próprios, cada vez mais, por seu estranho desaparecimento, e com a afirmação
constante de João, foram admitindo tacitamente a possibilidade da ressurreição,
possibilidade que terminou por converter-se, finalmente, em um dogma, apesar
de, na realidade, isto ter sucedido quando nenhum testemunho existia já desse tempo.
Tudo o que apareça em contrário foi obra das perturbações por que atravessou a
Humanidade nos tempos que se seguiram, cheios de desordens e lutas políticas e
religiosas.
Naturalmente, jamais
ocupou algum lugar em meu espírito o suposto fato, e também tinham-se acalmado
paulatinamente os escrúpulos de minha consciência, razão por que, ainda que me resolvesse
a isso, não teria podido divulgar a verdade sem risco para a nova comunhão da
parte de seus inimigos, que não teriam deixado de se aproveitar dela para
acusá-la de superstição e embuste. Sobretudo, havia acalmado meu espírito um
sonho extraordinário para mim, naqueles momentos. Foi na noite seguinte à de
nossa façanha, inteiramente justa e inocente por seus fins que, antes de
entregar-me ao sono, orei muito, de joelhos, apoiado a uma cadeira. Adormeci,
quando, inopinadamente, vi o Mestre descendo do alto do aposento na minha
direção. Seu semblante apresentava-se-me carinhoso e risonho, com uma expressão
de benevolência realmente angelical. Eu caí de joelhos durante o sonho,
dizendo: Senhor, por que me procuras? —
Aproximou-se
principalmente sem mover as pernas, como se deslizasse perto do chão e
levantando as mãos, como para abençoar-me, mostrou as feridas dos cravos,
vendo-se também as dos pés. Não temas, Pedro, disse... tão fraca é já a tua
lembrança do Messias, do teu Senhor?... Senhor! Senhor! Tu sabes quanto te amo,
perdoa, pois, minhas fraquezas e ignorância que me fizeram silenciar a respeito
de tua ressurreição. Ainda vendo-me, duvidas, Pedro, ainda? Eis-me com minhas
feridas ensangüentadas, toca-me, pois, que é meu corpo e acreditarás. Estendi
os braços animado pelo convite, para certificar-me da verdade, porém despertou-me
um golpe brusco, tendo perdido o equilíbrio por algum movimento durante o sono,
indo dar com a boca contra o chão, ainda que com pouca violência, devido à
minha posição de joelhos e por estar apoiado à cadeira.
Jamais havia tido eu
um sonho tão lúcido, e, desperto já, perdurava ainda com a maior evidência a
impressão do Mestre, seus próprios eflúvios, diremos assim, inconfundíveis com
os de outro qualquer.
Certamente o sonho
não passava de ser um sonho resultante, ao que parece, da continuada impressão
que trabalhava o meu espírito a respeito da ocultação do cadáver e afinal nada
tinha dito o Jesus da aparição referente ao que me preocupava. Em todo caso teria
confirmado sua ressurreição e esta não era verdadeira desde que eu mesmo tinha
ocultado o cadáver. Mas o sorriso de Jesus e a sua intenção de abençoar-me
fizeram-me crer que não tinha merecido sua censura, e suas palavras referentes
à ressurreição interpretei-as como querendo dizer: Faze de conta, tu também,
que ressuscitei. Sem dúvida, esta interpretação me convinha, porque justificava
meu silêncio e na verdade assim me pareceu, contribuindo isso para que se
tranqüilizasse o meu espírito.
Quanto à visão de
Madalena, que a tradição fez chegar até vós, respeitemo-la dentro das
intimidades do sentimento; porém ela certamente em nada podia referir-se ao
fato da ressurreição material. Em compensação, depois de alguns dias fizeram-se
muito freqüentes as intervenções do Messias entre nós e em duas ou três
ocasiões chegou a tornar-se visível para todos durante nossas orações em comum.
Certamente a nossa fé e o nosso entusiasmo nos hão de ter enganado em mais de
uma ocasião a respeito das ditas intervenções, porém, sem dúvida, foram de tal evidência
algumas delas, que deviam necessariamente proporcionar-nos a mais profunda
convicção a respeito de sua realidade.
Quanto às relações
com os mortos em geral, o Senhor no-las havia indicado sempre como um escolho
muito perigoso para os homens, definindo até como um pecado a sua prática continuada.
“Recebei as comunicações, dizia, porém, não as provoqueis. O que eu vos
digo, digo-vô-lo em nome de meu Pai celestial e quando eu não esteja mais,
visivelmente, entre vós, vos chegarão entretanto minhas intuições, e sempre que
o Pai o determine ou vosso Messias o julgue necessário, ouvireis em vossas
consciências as vozes dos celestiais mensageiros, sem que nada peçais e nada
pergunteis.” Apesar de tudo, na noite de sua oração no horto, Jesus nos
indicou os meios eficazes para nos pormos em comunicação com as almas dos
mortos, não sem insistir no perigo dessa prática que devia ser destinada para
casos muito especiais somente.
Porém, como Paulo não
ouviu os ensinamentos diretos do Mestre mas que os recebeu por suas intuições,
sucedeu que a igreja do Ocidente que ele encabeçara, entregou-se às práticas
diárias das evocações, formando-se desse modo o corpo de suas doutrinas e de
seu culto.
Tudo isso foi paulatinamente
passando também à igreja do Oriente, sem que chegassem, entretanto, a ser
nossas igrejas centros de evocações, como as do Ocidente, onde apareceram
também alguns endemoninhados, que se nós alguns, bem poucos, tivemos, não saíram
de nossas igrejas, sim que nelas se libertaram do espírito do mal, como o
próprio Messias nos havia ensinado. Justo é também dizer, que em compensação
muito maior era o movimento e o progresso das igrejas do Ocidente que o das
nossas.
Elas haviam marchado
com um espírito mais novo e vigoroso; nós, em compensação, nos havíamos
circunscrito à simples recordação e repetição do que fora dito pelo Mestre,
procurando, como ele, nos manter dentro do espírito judaico. Esta era, sem
embargo, uma má interpretação de nossa parte, porquanto os propósitos do Senhor
envolviam uma fundamental reforma do culto e de seu espírito, fazendo descansar
tudo sobre a idéia do amor e orientando tudo para o progresso, sobre a base dos
sucessivos renascimentos.
As transações que
aceitava e proclamava com o velho espírito das doutrinas hebréias eram as que
não se opunham ao triunfo de seus ideais. Estes foram levados avante com muito
maior vigor no Ocidente, fracassando, porém, o que devia ser fundamental, a lei
dos renascimentos. Em compensação, quase imediatamente, converteu-se em pouco
menos que um dogma, a chamada “Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo”
e fez-se uma prática assídua da “Ceia Pascal” ou “Santa Ceia”.
Mas este ponto necessita algumas indicações referente às relações mantidas
entre Paulo e os Apóstolos, a respeito do que me ocuparei tão depressa a oportunidade
me permita. Unicamente quero dizer que nas ocasiões em que Paulo nos visitou,
nos perseguia com suas perguntas, colocando-nos freqüentemente em situação
embaraçosa com a natureza das investigações que pretendia levar a cabo e a respeito
das quais nunca ficou satisfeito. Por minha parte, temia sempre que quisesse
investigar o referente à ressurreição de Jesus, porém nunca se referiu a ela
senão como a um fato conhecido e que está fora de discussão.
Desde o princípio não
se demonstrou Paulo muito disposto a reconhecer a nossa autoridade e talvez
isto foi um bem. Nós, em troca, nunca lhe demos o título de apóstolo e foi um
erro de nossa parte porque não podia ser mais evidente o seu apostolado.
Reconheciamo-lo, sem dúvida, como o chefe da igreja do Ocidente e mantínhamos
boas relações com ele, pareceu-nos que carecia dessa humildade e mansidão
ensinadas pelo Mestre e que deviam distinguir os seus apóstolos. Muito nos ajudou,
em compensação, ao amparo de nossos numerosos pobres com o óbolo da igreja do
Ocidente.
PEDRO
¹ Esta deferência nada tinha de
favoritismo, senão que correspondia a circunstâncias anteriores, porquanto, se
bem que Jesus se houvesse sempre manifestado como um ser extraordinário sob todos
os conceitos, ser sem dúvida Assinalado pelo dedo de Deus, devia necessariamente
receber o preparo humano apropriado para sua atuação entre os homens e foi José
de Arimatéia quem o encaminhou em seus primeiros passos, iniciando-o também mais
tarde na sociedade secreta da Cabala, onde se efetuava a evocação dos mortos e
se preparavam os adeptos para certas práticas de elevado altruísmo que incluíam
a cura dos enfermos pelo que vós chamais o magnetismo. Isto constituiu o meio
para o desenvolvimento das grandes aptidões ocultas de que Jesus era dotado, do
mesmo modo que o que há de chegar a ser grande orador ou escritor começa pela
aprendizagem materna, que lhe proporciona os meios de fazer-se entender a seus
semelhantes, sem o que a nada jamais chegaria. — Pedro.
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