Havia formado o
propósito de não dizer uma palavra sequer referente a
esta obra, cuja tradução empreendi com verdadeiro tédio,
somente cedendo aos numerosos e contínuos pedidos dos
assinantes da Revista Magnetológica e de outros amigos; porém
confesso que bem depressa mudei de modo de pensar a seu
respeito, como o demonstram as numerosas notas que lhe fui agregando, e
ao terminá-la neste momento, sinto uma verdadeira necessidade
de quebrar, mais resolutamente do que fizera com as notas,
minha primitiva resolução e abster-me de todo comentário e de
omitir qualquer introdução à edição castelhana. É um dever de
sinceridade que veio impor-se de certa maneira, e como a sinceridade é
uma virtude inerente a todo espírito evoluído, eu sempre
quis começar por ela para chegar a sê-lo algum dia.
Não pouca relutância
me custa realmente ocupar-me do assunto, não
tão-somente da obra, na forma em que vou fazê-la, ainda que omitindo a
maior parte do que poderia e teria que dizer, se o espaço nos
permite, pois não deixo de abrigar meus temores com respeito à
maneira como julgarão minha profissão de fé alguns dos leitores,
pouco preparados ainda para os assuntos do Moderno
Espiritualismo, como é natural supô-lo, quando se trata de coisas
recentemente postas em ordem do dia.¹
É verdade que muitos
ainda vêem com olhos assustadiços e muitos com
incredulidade ou falta de compreensão, tudo o que se refere ao
fenomenismo medianímico, com o qual justamente se relaciona uma boa
parte do que vou dizer. Mas, como se trata de
fatos, meu único papel é referi-los com clareza e
simplicidade.
Direi, antes, que,
como espiritualista independente, não estou preso a nenhum
credo ou religião, aceitando o que me parece justo e
verdadeiro, de onde quer que ele venha. Assim com respeito ao
Cristianismo mais uma objeção havia alimentado em meu espírito e muito pobre
conceito me havia merecido seu fundador.
Concedia-lhe quando muito o título de um ignorante e fanático iluminado,
sustentando contínuas polêmicas a respeito, na Sociedade Constância
e particularmente com seus ilustrados Presidente e Vice,
senhores Cosme Marinho e Felipe Senilhosa, que me honravam com
sua amizade e confiança.
Dizia-lhes, entre
outros muitos argumentos. Aceitando do completamente vossas
teorias com respeito aos seres encarregados de uma missão sobre a
Terra, não é admissível que a Inteligência Suprema escolhesse a
bárbara e atrasada Judéia como ponto de partida para a
implantação de novas doutrinas, mediante uma nova revelação, se é que
as chamadas revelações² têm tido lugar alguma vez. Não é
admissível, portanto, a aparição de um Jesus, tal como o pintam, e sempre
aceitando a teoria dos enviados, no meio de um ambiente como o
hebreu, que nenhum prestígio tinha no mundo civilizado, nem
por seu poder militar, nem por seu comércio e riquezas,
nem pelas indústrias, artes, letras e ciências.
Roma dominava o mundo
por seu poder e Atenas por sua cultura; qualquer
dessas duas cidades houvera podido servir vantajosamente como
centro de irradiação para as novas idéias e não se pode supor em
uma inteligência superior, como seja a de Deus, tanta falta de
tino como colocar seu enviado em meio de um povo pobre, atrasado
e vencido, em lugar de aproveitar-se das vantagens que lhe
resultariam da supremacia de Roma ou Atenas.
A atuação de Jesus
teve tão pouca ressonância, que ne-nhum escritor se ocupou
dela, a não ser o historiador hebreu Josepho, que só a ele se
refere de passagem, e ainda isto mesmo se crê que ela representa uma
interpelação alheia ao autor. A Vida de Jesus, as
profecias que a anunciaram, seu nascimento de uma
virgem por obra do Espírito Santo, a morte dos inocentes, sua
pregação, seus milagres, até mesmo a transfiguração, tudo
é uma cópia dos Vedas, da vida e atuação de Krishna, a segunda
pessoa da trindade budista.
Finalmente, depois de
ajuntar e ampliar os argumentos dos autores contrários a Cristo,
terminava sempre, em minhas discussões íntimas,
por classificar de vagabundo a Jesus, por não ter domicílio nem
meio de vida conhecidos. Expondo tudo isto com
singela precisão porque se ligam com ele umas
alucinações sumamente curiosas que, em verdade, não deixaram de
impressionar-me profundamente. Vou referi-las sem mais delongas,
com o objetivo de abreviar. Casualmente havia
tido com alguns amigos uma conversação referente
a questões filosóficas, a qual havia terminado com
pareceres diversos a respeito do Cristianismo e
com minha opinião
desfavorável para com Jesus; havia regressado bastante tarde a
minha casa e, momentos depois de me haver deitado, vi ao lado
de minha cama uma pessoa de pé, olhando-me ternamente porém com
fixidez. Sua figura e sua vestimenta eram as do próprio Jesus,
tal como nos acostumaram a ver nas pinturas e esculturas. Porém
era tal a superioridade e doçura de sua expressão, era tal
sua idealidade, que não somente eu nunca tinha visto nada parecido,
como nem sequer imaginado. Sentia-me ao
mesmo tempo envolvido
por uma aura tão suave, que se apoderou de mim num bem-estar
indizível. Sentia-me penetrado, diremos assim, pelo
pensamento desse ser superior, e tinha a sensação de que todos os meus
pensamentos se encontravam a descoberto, claramente revelados,
desnudos, diante de seus ternos olhares.
— Que pensas tu de
mim? Perguntou-me com voz e aspecto graves, porém
carinhoso.
— Que foste um
vagabundo,3 respondi maquinalmente.
— Sei que assim
pensas, disse com suavidade.
Em seguida, já
completamente senhor de mim mesmo, lhe per-guntei por minha
vez com veemência:
— Porém, dize-me:
Tiveste realmente consciência de que desem-penhavas uma
missão e de que eras um enviado?
Respondeu-me, sem
falar, movendo a cabeça três vezes em sinal de
confirmação.
— Porém, em meio das
contradições e da malevolência que te rodeavam,
continuavas julgando-te com inteira segurança?
Igual resposta.
— Sabias que ias
morrer e aceitavas a morte em apoio de tuas doutrinas com
verdadeira consciência do que fazias?
Novamente a mesma
resposta.
— E agora, depois de
vinte séculos de tua pregação, vendo que os homens não se
emendam, não se apartam de suas discórdias e
maldades, segues com as mesmas idéias?
Movendo uma vez mais
a cabeça em forma afirmativa e apon-tando o céu com o
indicador, disse: Só pelo amor será salvo o homem.
Desapareceu a visão
ou alucinação, deixando-me na mais pro-funda
perplexidade, sem mover-me e sem saber a que atinar durante largo tempo.
O fato não tornou a
repetir-se, porém, ao decorrer um ano talvez, experimentei
uma alucinação auditiva, relacionada com o mesmo Jesus.
Encontrava-me no
Paraguai, terminando uma carta dirigida ao Professor
García, então Diretor da Revista Magnetológica, na
qual me declarava vencido afinal pelas instâncias que se me
faziam para a tradução da Vida de Jesus e pensava a razão por
que teria que ser precisamente eu o tradutor de dita obra, tais
eram as insistências com que desde muito tempo se me assediava para
esse trabalho, quando ouvi distintamente estas palavras: Foste
o escolhido por tua sinceridade.
A voz era
perfeitamente humana. Voltei-me rapidamente para ver quem falava,
sem pensar que se tratava da resposta a uma reflexão mental
minha, o que demonstrava imediatamente não se tratar de um fato
normal.4
Efetivamente não
descobri ninguém.
Mas devo uma
explicação a respeito dos repetidos pedidos no sentido deste
trabalho, que, como já disse, eu não estava disposto a
empreender, havendo-me negado sempre a ele.
Haviam decorrido uns
cinco anos mais ou menos, da data em que,
encontrando-me na Redação de La Fraternidad, me dissera seu Diretor,
ao mesmo tempo que mostrava-me um livro de capa cor de
tijolo: “Aqui tem uma obra medianímica que está fazendo muito ruído,
é a VIDA DE JESUS, DITADA POR ELE MESMO. Todas as
revistas se têm ocupado dela, dedicando-lhe entusiásticos
elogios. Seria sumamente útil que você a traduzisse”.
— Por que eu? Já sabe
o pouco amigo que sou destas coisas. Tenho muito
de que ocupar-me e que considero de maior utilidade”.
Meses depois
encontrei a mesma obra sobre a mesa da Re-dação de Constância
e o Administrador, que me viu olhando o livro longe,
perguntou-me se a conhecia e se me animaria a traduzi-la para o
castelhano, pois contavam-se em grande número os interessados.
Respondi na mesma forma que o havia feito anteriormente e como
outras pessoas insistissem em aconselhar-me a empresa, manifestei
a opinião de que ela talvez se tornasse causa de prejuízos
maiores que de utilidade.
Mais tarde o Senhor
Ferraro, Secretário da Federação Es-piritualista,
apresentou-se-me com o mesmo exemplar (o que não era de estranhar
porque a Federação celebra suas reuniões no mesmo local de La
Fraternidad), e elogiando a obra, me fez ver também a conveniência
de sua tradução, com resultados idênticos aos casos anteriores.
Certa ocasião,
estando de visita em casa do Dr. Cosme Mari-nho, pai, deparei
com o mesmo exemplar sobre sua escrivaninha.
Falou-me ele também muito favoravelmente da tal VIDA, pelo que dela
havia ouvido falar e por ter encontrado passagens notáveis ao
folheá-la, e me perguntou se eu não achava conveniente sua
tradução.
Insisti na mesma
resposta, acrescentando que parecia não ha-ver mais que esse
exemplar em Buenos Aires, pois era sempre o mesmo o que caía sob
meus olhos, como se me fosse perseguindo,
talvez pelo muito
amigo que era eu de Jesus.
— Havia-me esquecido,
disse o Dr. Marinho, que o senhor nada quer saber de
Jesus, porém está laborando em um grande erro, porquanto a
idéia religiosa está intimamente ligada à personalidade do
Cristo no Ocidente e unicamente sob o prestígio de seu nome há de
evoluir a moral entre nós. Ademais, a nova revelação tem agora
seu lugar dentro do Cristianismo.
— Eu jamais lhe
contestei, fiz derramar uma lágrima a um se-melhante meu, nem
mesmo entre os meus companheiros sendo menino, pois sempre
estive completamente alheio às disputas de rapazes; jamais
cometi tampouco a menor injustiça, consciente do
ato que ia praticar,
e tenho feito todo o bem ao meu alcance, ainda que prejudicando-me,
como tem acontecido muitas vezes, não obstante este meu
viver, nem sou cristão nem quero saber nada do Cristianismo, e se o
Cristianismo jamais houvera existido, nem por isso a moral e o
sentimento religiosos haveriam deixado de participar do
progresso geral do mundo.5
O Dr. Marinho
manifestou sua discordância com argumentos e citações
muito felizes, mas que não me convenceram.
Foi algum tempo
depois desta conversação com o Dr.Marinho que teve
lugar a estranha alucinação da aparição de Jesus, à qual, diga-se a
verdade, coube o poder de mudar radicalmente meu modo de considerá-lo
a ele e à sua obra.
Tive que
transportar-me mais tarde para o Paraguai, buscando em seu
benéfico clima e formosa natureza um remédio para minha abalada
saúde, o que tive a sorte de encontrar, conseguindo uma
notável, quase radical, melhora.
Foi então quando
recebi carta do Diretor da Revista Magne-tológica,
dizendo-me que havia se tornado mais intenso o entusiasmo pela Vida
de Jesus, e que a seu ver eu devia satisfazer o desejo de muitos
bons assinantes. Que afortunadamente tinha em seu poder um
exemplar em italiano, que lhe emprestara o Senhor Ezequiel
Mazzini; este também indicando a conveniência da tradução, e que
com esse objetivo tinha lido a obra, ficando encantado com ela e
completamente seduzido por seu estilo e por seu conteúdo. A obra
se impõe realmente ao espírito do leitor e se não foi Jesus quem a
escreveu, ou ditou, deve ser outra pessoa igual a ele, como se
fora ele, tal é a influência que ela exerce no ânimo dos que a lêem;
assim, mais ou menos, me escreveu.
Minha resposta foi
negativa, porém pouco categórica, e com o recebimento de
novas cartas, mais fracas ainda se tornaram as negativas, até que
me foi remetido o exemplar prometido, que outro não era senão o
que eu já havia visto nas diversas ocasiões a que me tenho
referido. Este detalhe também me impressionou, embora nada de
estranho tivesse em verdade, porquanto me parece não existia outro
exemplar em Buenos Aires.
O que realmente é
estranho, e que mais do que tudo merece chamar a
atenção, é o fato, que a muitos tenho referido, da paralisação que experimentava
na mão toda vez que, ao traduzir alguma passagem que
se me deparava difícil, pretendia introduzir modificações na
frase. Devia, pois, restringir-me o mais possível à letra do original,
porquanto se me tornava humanamente impossível o escrever
com alterações, a menos que se tratasse de alguma modificação de
simples palavras forçosamente impostas pelas diferenças do
idioma; porquanto a mão não obedecia já a minha vontade, e se,
fazendo um esforço, lograva introduzir alguma ligeira
modificação, a mesma mão, arrastada por uma força irresistível,
riscava as palavras acrescentadas ou substituídas.
Penso ser um dever de
consciência referir este fato, que con-sidero de uma
importância transcendente, porquanto devido a ele, a tradução
resultou de uma extraordinária exatidão, e também porque o caráter
misterioso que presidiu o processo da tradução em si mesma, feita
por quem menos que nenhum outro houvera parecido ser o
designado para este trabalho, veio a acentuar-se muito mais ainda
devido a tal fenômeno.
Trata-se realmente de
fatos anormais, tanto neste caso como nos dois
anteriores, fatos cuja referência não me há de favorecer perante a
opinião pública, pela falta geral de conhecimentos das
matérias que se relacionam ao medianismo.
Bem sei, salvo
casos especiais, o escritor deve manifestar-se sempre
de acordo com a cor e grau de intelectualidade de
seus leitores, sem adiantar-se imprudentemente à época em que se
encontra6 e ao nível geral da inteligência, sob pena de cair vítima
do desequilíbrio em que viriam a ficar reciprocamente
colocados, um com respeito aos outros; porém sei também que é grave
erro o de manter-se sempre dentro da rotina dessas idéias velhas,
tão-somente pelo temor egoísta de comprometer sua
própria reputação de homem ponderado e de reflexão madura, pelo
qual os espíritos conservadores imaginam ser distinguidos
pelas maiorias.
O justo e lógico
seria que, sem dar saltos, imprimindo es-tremecimentos
bruscos à tranqüila superfície das águas da intelectualidade
geral, procurasse cada um provocar um pequeno movimento de avanço
ao conjunto das idéias e do pensamento das massas, colaborando
pessoalmente assim todo o que escreve, na grande obra do
progresso humano, em lugar de contribuir para a paralisação das
faculdades superiores do espírito. Devido a tal crença é que me
animei a apresentar as manife-stações sinceras que deixei acima, com
respeito ao que me sucedeu no terreno do fenomenismo
medianímico e que designei como casos de alucinação, por falta
de controle, único que, estabelecido com rigor, teria podido
conduzir-me ao estudo de ditos fenômenos, como de alguma coisa
realmente objetiva.
Apesar disso, a mesma
índole dessas alucinações e o momento em que
tiveram lugar, são de natureza como que para dar algum prestígio
ao protagonista da obra que eu haveria de traduzir mais tarde,
e à própria obra, arrastando-me de alguma maneira para o
sentido religioso de seu conteúdo.
Já que tratamos deste
ponto, Vou permitir-me também relatar o que em
igual sentido sucedeu com a distinta Senhora Maria Z. De
Brignardello, membro ativo da Sociedade Constância Encontrava-me algo
adiantado na tradução da VIDA DE JESUS, quando esta
senhora veio em visita a minha esposa.
Julgando-a sabedora
do trabalho que estava executando, falei-lhe
dele e do entusiasmo
geral, manifestado por uma infinidade de cartas, que todos os
dias vinha recebendo.
Fui informado que a
senhora, não recebendo por aquele tempo a Revista
Magnetológica, tudo ignorava sobre este particular, e com o
propósito de bem inteirá-la sobre o assunto, li para que ela ouvisse
o belo prólogo do Capitão Volpi, e diversos outros fragmentos,
entre os quais se encontrava o retrato que Jesus traçara de si mesmo.
Ao ler esta parte notei que a senhora a escutava com
manifesta contrariedade.
Manifestou-me, sem
embargo, a boa impressão geral que a leitura do trabalho
tinha produzido em seu espírito, e se retirou levando consigo o que
lhe entreguei da tradução.
Alguns dias depois
fomos, minha senhora e eu, à sua casa em retribuição à
visita que nos fizera, e me recebeu dizendo-me:
“Estava ansiosa por
encontrá-lo para referir-lhe um fato ex-traordinário que me
sucedeu fora de toda a expectativa de minha parte”. Eu tinha lido a
descrição do retrato de Jesus, prosseguiu, em uma
obra que tratava dele e que muito me havia agradado, aceitando
como absolutamente exato o que a seu respeito na mesma se
dizia. Quando ouvi depois o que o senhor me leu com referência
ao físico do Mestre, me impressionou muito
desagradavelmente a assinalada diferença resultante da comparação que fiz
dos dois retratos: o que eu conhecia anteriormente e tinha
por certo e o da leitura que me proporcionou.
Calei-me não obstante, dizendo para comigo mesma: talvez eu não
tenha ouvido bem.
Na mesma noite, logo
que cheguei à minha casa e me dispus a deitar-me,
resolvi antes tornar a ler o retrato. Sua leitura veio confirmar o meu
juízo primitivo, causando-me verdadeiro dissabor o que, sem
mais demoras, considerei uma inaudita mistificação.
Deitei-me sob essa
desagradável impressão, depois de haver aceso, como de
costume, a lamparina da noite.
Havia-me deitado há
poucos instantes, quando, fixando meu olhar em um quadro de Jesus
que tenho em frente ao meu leito, me pareceu que o retrato
movia os olhos, olhei com redobrada atenção e o fato tornou-se-me
real; os olhos se moviam sem dúvida alguma e me olhavam
com uma expressão tão delicada e tão suave, que eu não
posso definir.
Via ao mesmo tempo a
imagem que se ia engrandecendo e des-tacando-se do
quadro, aos poucos ia tomando corpo e assumindo vagarosamente
os caracteres da realidade. A dúvida não era possível, a
evidência estava ali diante de meus olhos.
E já não eram tão-somente
os olhos, senão o rosto todo e de-pois o corpo inteiro, que se
via claramente no centro de uma luz diáfana, tenuemente azulada,
que a este tempo tinha inundado todo o
aposento. No centro
deste clarão divisava-se nitidamente uma pessoa, e esta era a
pessoa de Jesus toda inteira, cobrindo naturalmente o
quadro, que desapareceu por detrás de tão inesperada como
portentosa visão; o Mestre se deslocou lentamente para o meu
lado, como que deslizando, sem tocar o solo.
A luz que rodeava,
com uma claridade realmente celestial, a pes-soa de Jesus, me
permitiu ver com precisão a sua fisionomia,sem igual por sua
beleza e pelo idealismo de suas expressões. Os seus traços, a cor de
seus olhos, tudo correspondia em seus menores detalhes com
os do retrato que o livro, que ele ditou, fazia do Mestre.
A visão permaneceu
alguns instantes diante de mim e durante todo esse
tempo, e depois de seu desaparecimento, me senti inteiramente
envolvida e penetrada por uma atmosfera salutar, tão tênue e
tão suave, que nada que com ela se parecesse havia eu jamais
percebido, nem sequer imaginado. Produziu-me aquilo um místico
arroubamento que me sinto incapaz de descrever.
Desvanecida a
aparição, continuei sentindo-me como que do-cemente dominada
por esses benéficos eflúvios que se tinham
desprendido do
espírito que me aparecera, e que produziram em mim um bem-estar até
então desconhecido, e adormeci como que possuída por um
sentimento de devoção, sob a impressão de que realmente tinha sido
o próprio Jesus, quem se apresentara em pessoa para
testemunhar a exatidão do retrato, que ele nos faz de si mesmo nesta sua
história e para dar ao mesmo tempo à obra todo o cunho de veracidade
que se pode deduzir de tão extraordinário
fenômeno, produzido
em seu favor.7
Este comovedor
acontecimento deixou-me profundamen-te convencida que a VIDA
DE JESUS, DITADA POR ELE MESMO, é realmente
verídica.
Convém recordar que a
Senhora Brignardello se havia retirado de minha
casa levando um conceito desfavorável para com o novo retrato de
Jesus e que essa má disposição se tornou extensiva a todo o
livro quando, relendo-o já em sua casa, disse: isto é mistificação.
Recolheu-se, pois, a seu aposento com essa impressão e foi sob a
mesma que teve lugar o fenômeno, sob todo ponto inesperado.
O mais curioso é que
estas aparições, as chamaremos assim, se repetiram
com diversas outras pessoas, freqüentemente, durante o sono, porém
outras vezes durante a vigília, com pessoas reciprocamente
desconhecidas e que nessas ocasiões ficaram surpreendidas pela
manifestação, como no caso acontecido à Senhora de
Brignardello, por não terem antecedentes de nenhuma espécie a respeito e
resultar-lhes completamente inesperado o fato.
Porém eu só refiro a
que antecede para evitar as que se tor-nariam inúteis repetições,
pois, salvo variantes de detalhe, todas elas se parecem. Como quer
que seja, se vê claramente do que ficou atrás, assim como do que vem
relatado no belo prólogo da tradução italiana, e do
conteúdo e estilo da própria obra, se vê de tudo isto alguma coisa como que
o advento de uma era nova de labor
cristão, como se o
Mestre, reassumindo a direção, tome o lugar que de direito lhe
pertence como encaminhador do intenso movimento
espiritualista que se evidencia em todas as partes há pouco mais de meio
século.
A moral e o
sentimento religioso nada são fora da idéia espi-ritualista, única
que lhes empresta verdadeiro apoio, depois de lhes haver dado a
existência, senão que ela deve ajustar-se severamente à verdade
para possuir valor efetivo em si mesma. Se a idéia
espiritualista, para defender os foros de sua tradição, se declarasse contrária
às verdades que vão descobrindo-se com o progresso das
ciências, como sucede com o espiritualismo inculcado pelas
religiões e com o ensinado pela filosofia clássica, perderia todo o seu
prestígio, porque a verdade nunca pode ser contrária à verdade.
Esta VIDA DE JESUS
vem prestar um importantíssimo serviço neste
sentido, deixando de lado, como não existentes, muitos acontecimentos
que tornavam inaceitável, para a maior parte dos estudiosos,
a pessoa do Cristo, devolvendo-a assim à realidade
precisamente no momento em que se fazem os maiores esforços para
relegá-la à categoria das lendas.
Ganha deste modo a
verdade e ganham principalmente a moral e o sentimento
religioso, que se fundamentam e sempre devem fundamentar-se
nela.
Certos indivíduos
costumam estabelecer uma separação profunda entre o
ideal e o real. Assim procedem porque ignoram que geralmente há
maior realidade no que não se vê, do que naquilo que se vê,
pois no desconhecido se encerra todo um infinito de
realidade, ao passo que nossos cinco pobres sentidos só nos põem em relação
com uma parte ínfima do que existe; a outra grande parte é para
nós como se não existisse. Conformemo-nos entretanto com o que
temos alcançado e com o que paulatinamente vamos alcançando,
demonstrando-nos, sobretudo, sempre sinceros, dispostos a
aceitar o verdadeiro, venha ele de onde vier.
Convém recordar aqui
que se deve ao progresso das ciências, até agora
em luta constante com todas as religiões, o grande passo dado
para a frente pela Humanidade. É a esse progresso que se deve
o rompimento das cadeias que tinham estreitamente
acorrentado o pensamento do homem a preocupações
retrógradas e a doutrinas perversas, que chegaram a santificar os crimes
mais horrendos da INQUISIÇÃO e a inundar o mundo inteiro em
rios de sangue, com suas intrigas religiosas na Europa, com as
cruzadas na Ásia e com a conquista na América.
Mas uma coisa é o
sentimento religioso e a moral e outra coisa são as
religiões. Esforçam-se justamente a moral e o sentimento religioso
por dirigir por caminho reto a mentalidade humana elevando-a
acima dos atavismos de nossa origem bestial.
Não culpemos portanto
a coisa alguma e a ninguém do que somente é fruto de
nossas baixas paixões. Deixemos esse passado de opróbrios, e
olhemos frente a frente, impondo a nós mesmos, como dogma essencial
de nossas crenças, a obrigação estrita de fazer cada um quanto
esteja ao seu alcance em favor da dignificação humana,
mediante a cultura da inteligência, a elevação do caráter e
o brilho de novos e alevantados sentimentos.8
OVÍDIO REBAUDI
¹ Não me refiro naturalmente aos que se sentem refratários a tudo o que não se relaciona com a ordem exclusivamente material das coisas (que são os verdadeiros materialistas e que também não poderiam deixar de sê-lo, por deficiência de evolução cerebral neste sentido). Há materialistas que o são por convencimento e não por convicção, devido a que o estudo e a análise dos fatos os convenceram da falta de fundamento do espiritualismo que se lhes havia ensinado. Não é destes que eu falo, pois são em geral os mais bem dispostos para o estudo do Moderno Espiritualismo. — Nota do Sr. Rebaudi.
² Nós os modernos-espiritualistas cremos na estrita solidariedade entre o mundo corporal e o extracorporal, do qual resultam revelações permanentes da verdade, mediante o progresso, que nos torna capazes de sua percepção e compreensão cada vez mais completa. Essas revelações, de preferência, que se singularizam em determinados povos, favorecendo as divisões entre os homens, não são críveis, ainda que aceitando a teoria religiosa. As religiões têm sido sempre uma da causas permanentes das discórdias humanas e não é possível atribuir esse papel à revelação divina, na qual todas elas dizem basearem-se. O que se observa é que os indivíduos como os povos marcham para a perfeição por seus próprios méritos e por seus próprios esforços. — Nota do Sr. Rebaudi.
³ Essa era na realidade minha idéia e eu manifestei-a maquinalmente; quase pode dizer-se que se manifestou por si mesma ao ver-se meus pensamentos completamente a descoberto.
4 Nos dois casos, porém, mormente no primeiro, o fenômeno alucinatório me tomou realmente de surpresa, porquanto nenhum antecedente interveio para a sua produção: nada, nem remotamente parecido, havia passado por minha imaginação e nada pode haver-se apresentado nunca com maior espontaneidade. Sem dúvida alguma não houve nisto possibilidade de controle; por isso designo o caso como alucinatório, confessando não obstante que ele influiu em mim como se se tratasse de fatos reais.
5 Refiro tudo isto, que por si só carece de importância, para demonstrar o estado de meu espírito antes da manifestação que tanto me impressionou, por mais que ela não tivesse
parecido relacionar-se com a Vida de Jesus.
6 Sem ser espírita, ou coisa parecida (já disse que não pertenço a nenhuma escola determinada) compreendo que o mesmo se encontra fora do alcance da generalidade dos homens. Como doutrina moral, não sendo outra coisa que o próprio Cristianismo, seus preceitos são claros e simples, embora moralmente superiores a sua execução na prática por parte dos adeptos; porém o lado filosófico é já mais difícil, sendo a chamada Teosofia uma prova das complicações que podem resultar de seu estudo. A inventiva teosófica, efetivamente, chega até a dotar a alma de um corpo de desejos e que se organiza de maneira como que para constituir dentro de um regime centenário todo o desenvolvimento de suas teorias, demonstra como é fácil desviar-se quando se abandona o terreno positivo para lançar-se no campo das divagações filosóficas. O verdadeiro é o positivo, o que de alguma maneira constitui uma realidade. A Teosofia despreza o fenomenismo, adiantando em troca afirmações, não abonadas por fatos, sobre estas afirmações levanta um edifício, que tanto mais se distancia da verdade quanto mais se eleva. A Teosofia é, pois, um desvio místico do Espiritismo teórico.
7 Se supomos que estas alucinações têm uma causa consciente que se encarregara de fazer
ressaltar o valor da VIDA DE JESUS, temos de convir que o objetivo foi alcançado. A única coisa, sem embargo, que nos conduz a essa suposição e o próprio resultado das alucinações que, se quiséssemos catalogá-las como VERÍDICAS, nos encontraríamos diante da absoluta falta de controle. A única coisa que poderíamos dizer, é que existe um acúmulo de circunstâncias, que devido a raras coincidências, todas elas se ajuntam para dar valor à obra e comunicar-lhe um caráter de elevado misticismo. A Sociedade Real de Ciências, de Londres, fez reunir e estudou uma grande quantidade de fenômenos de alucinações verídicas e merece sobretudo ler-se a obra, que justamente com o título de Alucinações Telepáticas, publicou a Comissão formada na douta associação, constituída especialmente pelos senhores Turney, Myers e Padmore. Porém tudo isso se refere a questões complicadas das quais não podemos tratar assim em passagem rápida.
8 Este prólogo foi escrito sem ter à
vista as Duas Palavras do tradutor que se encontram
mais adiante e que, publicadas dois
anos antes, foram em verdade por mim esquecidas,
devido aos dolorosos contratempos da
revolução do Paraguai, onde me encontrava então,
em julho de 1908, voltando a sofrer
minha saúde graves transtornos que me obrigaram a
regressar a Buenos Aires. Os dois
escritos refletem o meu modo de pensar, em dois
momentos diferentes; eles se
completam; entretanto, se os houvera recordado, um dos dois
não teria aparecido. Que sejam tomados
em conta do imprevisto e involuntário, casos como
este que forem aparecendo na
publicação desta obra. — O. R.
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